quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Do Céu ao inferno


Apresentado como a sétima maravilha no combate ao crime, helicóptero da polícia do Rio de Janeiro é derrubado por bandidos. Governo carioca insiste na idéia da guerra

Por marcelo Salles, da Caros Amigos


No dia 17 de outubro de 2009 o Rio de Janeiro parou. Todo o contingente policial do Estado foi mobilizado, incluindo quem estava de folga. Quarteirões inteiros foram fechados. Motivo: a derrubada de um helicóptero da Polícia Militar por integrantes do Comando Vermelho, entre os bairros de Vila Isabel e Engenho Novo, na Zona Norte da capital. Tudo com direito a transmissão ao vivo de rádio, tevê e internet. Naquela madrugada, dezenas de bandidos tentaram invadir o Morro dos Macacos, atualmente controlado pela empresa Amigos dos Amigos (ADA). Foram cerca de seis horas de intenso tiroteio. Dezenas de famílias foram obrigadas a abandonar suas casas e a esticar colchonetes na Praça Sete, a dois quarteirões do pé do morro, onde passaram o resto da noite sem saber quando poderiam retornar.

No início da manhã, por volta das oito horas, a polícia começou a chegar. Ainda que tardia, a ação foi bem recebida pelos moradores – fato raro no Rio de Janeiro. A tentativa de invasão foi rechaçada, mas o helicóptero foi derrubado por bandidos em fuga, já na altura do Morro São João – vizinho do Macacos. A versão oficial dá conta de que o aparelho estava sendo usado para socorrer policiais encurralados, mas moradores da região dizem que na verdade ele servia como ponto avançado de ataque: estava atirando. Assim como há exatos dois anos, em 17 de outubro de 2007, um outro helicóptero perseguiu e executou pessoas em fuga na favela da Coréia.

A derrubada do helicóptero (e não o sofrimento dos moradores) colocou novamente a cidade no noticiário nacional e internacional e mais uma vez o debate foi direcionado para o “combate ao narcotráfico”, a “guerra contra as drogas” e congêneres. O secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, disse que o episódio foi o “11 de setembro” carioca. O jornal O Globo manifestou preocupação com a realização das Olimpíadas – mais ou menos como quando diante de um tiroteio na favela da Maré estampa algo como “Pânico entre motoristas na Linha Vermelha”.

O governo Sérgio Cabral (PMDB) apostou, de novo, na repressão violenta: nos dias seguintes à queda da aeronave houve pelo menos 40 mortes informadas oficialmente, em decorrência de ações da polícia – no dia da queda do helicóptero, morreram três policiais e um número não informado de bandidos durante a troca de tiros entre as facções rivais.

A solução apresentada pelo governo não é nova, e nem eficaz. Basta lembrar da megaoperação realizada no Complexo do Alemão, há dois anos. Dois meses de ocupação e sessenta mortos depois, a favela continua sendo o principal bunker do Comando Vermelho, segundo reconhece a própria polícia. E mais: ninguém se sente mais ou menos seguro no Rio de Janeiro após essa e outras ações violentas do governo – a situação segue igual ou pior. Apesar disso, medidas repressivas são sempre elogiadas pelas corporações de mídia. É como se essas empresas clamassem por sangue, como se viu no diálogo entre dois apresentadores da TV Record a respeito dos acontecimentos no Rio: “Enquanto as armas da polícia falham, os traficantes têm poder até para derrubar um helicóptero”.

Quem ouve até pensa que os vendedores varejistas de drogas ilícitas estão em posição de vantagem bélica em relação à polícia. “Não é verdade”, diz, categórico, Nilo Batista. Um dos maiores juristas do país, professor titular da UFRJ e da UERJ, fala com conhecimento da causa. Basicamente por dois motivos: participou dos governos Leonel Brizola (como secretário de Justiça e Polícia e vicegovernador, além de ter chegado a governar o Estado durante dez meses); e atualmente preside o Instituto Carioca de Criminologia, centro de pesquisa reconhecido no Brasil e no exterior.

O professor propõe reflexões que, invariavelmente, são ignoradas pela mídia hegemônica. A diferença entre as facções criminosas, por exemplo, poderia esclarecer muito. Por que as ações policiais nos últimos anos têm sido direcionadas contra as favelas controladas pelo Comando Vermelho, se o Terceiro Comando (TC) e Amigos dos Amigos (ADA) praticam os mesmos ilícitos? A mobilização da polícia no dia da queda do helicóptero foi para proteger a população local ou para impedir que o Comando Vermelho retomasse dos rivais o antigo ponto de venda, que abarca todo o entorno do Maracanã e adjacências?

Nesta entrevista, o professor faz duras críticas às ações policiais, acusa as corporações de mídia de incentivarem a violência e chama a responsabilidade política das ações de extermínio para o governador Sérgio Cabral. “Foi nele em quem a população votou”.

Pode comentar a política de segurança a partir da derrubada do helicóptero e da reação do governo?

Nilo Batista - Pra ser sincero, eu não reconheço nessas atividades uma política pública na qual eu veja objetivos, métodos, metas. O que eu vejo é uma implacável carnificina no entorno do comércio varejista de drogas. O aproveitamento desse fracasso da política de drogas, cuja única utilidade hoje é facultar as oito bases dos EUA na Colômbia, permitir que o comandante da IV Frota afirme candidamente que o único motivo de sua reativação é o narcotráfico, aí todo mundo fica feliz, não há nenhum olhar critico sobre isso, não tem nada a ver com o pré-sal, com os acontecimentos econômicos do Atlântico Sul, e sim com o narcotráfico.

Então, tá. Aliás, qual é mesmo o narcotráfico entre Brasil e África que tá preocupando?
Qual é o foco, então?

Internamente, trata-se da contenção da pobreza urbana, que é o problema que a desigualdade obscena da sociedade brasileira coloca. Infelizmente, mesmo entre setores da esquerda, acaba prevalecendo um olhar moral, fruto de um preconceito inercial sobre o lumpesinato, que no capitalismo industrial era completamente explicável, mas no capitalismo sem trabalho, no capitalismo onde predomina o trabalho morto, eu não sei como pode permanecer. As esquerdas acham que as violências policiais contra os inúteis da economia neoliberal nada tem de político. Os desempregados, os inempregáveis, os irremediavelmente alijados, cujas estratégias de sobrevivência são criminalizadas implacavelmente, seriam eles os vilões da história que não acabou? Atrás das trombetas higienistas do "Choque de Ordem" está a mcdonaldização da orla, a repressão do comércio informal popular, dos cocos, picolés, das quitandeiras do Galo ou do Pavão, que serão substituídas até o grande evento turístico-olímpico por assépticos sanduíches transnacionais.

Como a privatização se liga com a repressão?

No Pan, mataram 60 no Alemão. Aqueles 19 no último dia e antes. Nas Olimpíadas quantos vão ser? O prefeito só fala em "vender o Rio". Qual a idéia para os favelados? É só essa? Estamos falando de política, do destino da juventude pobre, de um sistema penal que participa intensamente da acumulação capitalista, que descrendencia o debate político pelo tolo debate das representações jurídico-penais do fato político. Não se discute, por exemplo, toda a economia da pena, que está presente nas penitenciárias privadas (construção e gestão) ou nas tecnologias de segurança - por trás dessa proposta há um precioso nicho de mercado. Quando eu tinha responsabilidades de comando sobre as polícias do Rio de Janeiro, delegadas pelo governador Leonel Brizola, ele não fazia isso que hoje se faz: “Eu não tenho nada a ver com isso”. Como não? Como o governador do Estado não tem? Como ele entrega a uma gestão tecnocrática um poder que pode matar 20 pessoas num dia, e que mata pelo menos 1.500 pessoas por ano, da mesma faixa etária e extração social? Beltrame é um delegado de polícia. Mas quem votou nele? Não é dele a responsabilidade política por estar um helicóptero a disparar sobre uma população indefesa. Eu aprendi, nos anos que passei na polícia, que, salvo honrosíssimas exceções, a notícia "policiais estavam acuados no morro tal" significa que um entendimento não deu certo.

O secretário José Mariano Beltrame dizia que isso é um problema de médio a longo prazo,que só vai ser resolvido a partir da instalação de mais UPPs.


Olha aqui, a coisa precursora das UPPs era chamada PPC - Posto de Policiamento Comunitário. O que a experiência comprovou é que, se você bota o PPC ali, ele vai ter que dialogar, e se estamos falando de uma atividade econômica importante para aquela comunidade, ou o PPC se incorpora ou
ele vai ter que fechar o olho, não vai ter jeito. Se a idéia é como ocupação colocar permanentemente uma força nessas comunidades, a proposta é completamente autoritária. Você quer acabar com a infância dessas crianças? Elas moram num país, numa cidade ocupada? É uma experiência que não está avaliada, que sempre começa muito mal, sempre de maneira sangrenta, porque a Pacificação começa com os óbitos, e depois fica aquela coisa de fachada, a capitã boazinha... Até quando vamos apostar em soluções policiais? Quando foi, onde foi que soluções policiais resolveram problemas? Havia, nos anos 1930, nos EUA, uma enorme crise de segurança pública. Foi uma solução policial ou foi a legalização da droga ilícita que deu uma acalmada?

Então, essa declaração de que a queda do helicóptero foi nosso 11 de setembro...

Dá uma idéia disso que estou falando. Totalmente despropositada.


Parte da direita costuma usar muito o exemplo do Programa de Tolerância Zero, de Nova York.

Quem dá esse exemplo é um ignorante. Nos EUA todo houve estabilização dos indicadores criminais nos anos noventa graças a cinco fatores: pleno emprego, redução demográfica da população de 15 a 24 anos... Os outros estão explicados em Loic Wacquant, quem quiser é só pegar pra ler. Isso foi nos EUA todo, só em Nova York o Giuliani ficava falando em Tolerância Zero. O único efeito comprovadamente ligado a essa bobagem do Tolerância Zero foi o aumento do controle e da violência policial contra os pobres.

Vi uma reportagem na TV Record mostrando uma arma de um policial que falhou, ele pedia ajuda, e a câmera filmando tudo. Quando voltou para os apresentadores, eles comentavam o absurdo de armas obsoletas, que situação a da polícia, e o poder dos traficantes cada vez maior, até derrubaram um helicóptero. Levando a crer que os traficantes varejistas têm um poder muito maior que a polícia.

Esse discurso é tão velho... Eu já ouvi mais de cem vezes. É uma maneira de chamar mais violência contra as classes populares, essa coisa de dizer que os grupos são mais armados que a polícia. Isso não é verdade, nunca foi. O problema é que eles conhecem mais o terreno, eles têm mais a simpatia
da população – nem sempre, mas majoritariamente. Mas até no Alemão, se o Bope quiser ele entra. O resultado vai ser um grande número de crianças mortas, velhos mortos, mas entra. Agora, a Constituição, no seu artigo 144, determina o compromisso da polícia com a vida, e não com a morte. Aquele pessoal que se reuniu em 1988: "A segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública e para a incolumidade das pessoas". Não é pra matar, não. É pra salvar. Só que no Rio de Janeiro parece que vigora a Constituição de outro país.

Porque esse debate sobre as facções não está nas corporações de mídia?

Porque esclareceria tudo, ajudaria a análise. É preciso estudar essas organizações populares ilícitas. Em São Paulo, a academia está estudando o PCC, que tem responsabilidade direta no decréscimo dos homicídios. Não é tudo igual. O fato de disputarem o mesmo negócio ilícito não significa que sejam todas a mesma coisa. A coisa que mais me surpreendeu, quando eu tava no governo, foi descobrir quem é o cara que decidia: "agora a polícia vai nesse morro". Qual o critério? Procurei estabelecer critérios objetivos. Que resistência... Que resistência. Tem que ter critérios objetivos. Caso contrário, sequer compreenderemos os conflitos em curso.

Um comentário:

  1. Agora a culpa é de Cabral...não vão comentar de governos anteriores não?

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