Por Gilmar Mendes - do Estadão
Comecemos pelo óbvio: preso é gente. E gente precisa de alimento, educação e trabalho. No Brasil, porém, a realidade às vezes consegue revogar até axiomas. Aqui,os presídios não são casas correcionais socializadoras, mas depósitos de seres humanos que, lá chegando, se transformam em coisas — pelo menos aos olhos apáticos da maioria — e como tal são amiúde tratados. Essa constatação vem sendo escancarada diariamente ao País, desde que o Conselho Nacional de Justiça pôs em execução o Programa dos Mutirões Carcerários. As deficiências são de toda ordem: desde a já conhecida superpopulação, a exigir investimentos muito mais consistentes na estrutura carcerária, até o lixo acumulado e a infestação por ratos, cuja solução é de simplicidade absoluta.
No âmbito do sistema de justiça, faltam técnicos e estrutura mínima de funcionamento em algumas varas de execuções penais. Enquanto escasseiam defensores, sobram processos aguardando instrução, num quadro em que o excesso de prazo passa a ser a regra. De fato, os mutirões carcerários constataram um inadmissível déficit de mais de 167 mil vagas no sistema prisional — que hoje mantém mais de 473 mil pessoas e cresce em média 7,11% ao ano. Esse número é ainda mais grave se considerados os milhares de mandados de prisão que ainda não foram cumpridos. Sem dúvida,o total gasto pela União no ano passado para construção de presídios é insuficiente e não atinge sequer 3%.
Dos recursos essenciais para a criação dessas vagas. A ineficiência sistêmica é mais flagrante no paradoxo de que milhares de réus encontram-se soltos, sem perspectiva de julgamento, ao tempo em que outros tantos se acham ilegalmente encarcerados, com excesso de prazo na prisão cautelar ou no cumprimento da pena. E o mais aviltante: muitos presidiários cumprem, provisoriamente, penas que ultrapassam o teto legal fixado para o delito que cometeram. É para reverter tais ignomínias que o CNJ trabalha. Em um ano e meio de trabalho e após examinados mais de 111 mil processos,foram concedidos cerca de 34 mil benefícios previstos na Lei de Execução Penal, entre os quais mais de 20,7 mil liberdades. Em outras palavras, por dia, 36 pessoas indevidamente encarceradas reouveram o vital direito à liberdade.
Quanto à racionalização dos gastos — decisiva num sistema carcerário em que a superlotação é a regra —, os mutirões resultaram na realocação de vagas equivalentes à capacidade de 40 presídios médios. Não é pouco,mas há muito ainda por fazer. A Lei de Execuções Penais determina que os condenados trabalhem ou tenham acesso ao ensino fundamental. Todavia, recente tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro revela que, em 2008, a média de presos sem trabalho gira em torno de 76% e apenas 17,3% estudam. Também de acordo com a pesquisa, entre os detidos que trabalham, a probabilidade de reincidência cai a 48%. Para os que estudam, reduz-se a 39%. Ora,o alto índice de reincidência demonstra que o sistema prisional não atende ao seu principal objetivo — recuperar, reabilitando ao convívio social, aqueles que tiveram a desventura de infringir a lei.
Ainda que não resolvam, por si sós, a grave situação por que passa o sistema de justiça criminal, os mutirões descortinaram, jogando luz sobre o incômodo quadro, uma realidade que a população brasileira, em geral,e o Estado,em particular, preferiam ignorar, como se o problema não existisse ou não lhes fosse pertinente. Os explosivos indicadores da violência urbana, o aumento da criminalidade e da sensação de insegurança demonstram às escâncaras que o problema se agrava a olhos vistos e precisa ser resolvido com medidas pragmáticas e não paliativas,a exemplo das parcerias que o CNJ vem fazendo com órgãos públicos e com a comunidade para viabilizar a capacitação profissional necessária à reinserção dos presos na sociedade, além do acesso a serviços básicos como a previdência e assistência social.
No abrangente conjunto de ações desenvolvidas pelo CNJ para viabilizar a efetiva reinserção de egressos, destacam-se projetos como o Começar de Novo, a Advocacia Voluntária, o Recambiamento de Presos e até a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (Lei 12.106/09), no âmbito do CNJ, verdadeiros legados estruturantes dos mutirões carcerários, com frutos até mesmo no plano da justiça criminal. Não por outro motivo, o 3º Encontro Nacional do Judiciário,
Realizado no início do ano, elegeu o ano de 2010 o ano da justiça criminal. De fato, os mutirões nos dão uma aula de Brasil, cujas revelações ensinam que apenas um esforço conjunto, sério e planejado pode virar essa página tão triste e calamitosa,tanto do ponto de vista dos direitos humanos como da segurança pública. Daí a elaboração de ampla Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, alicerçada em estreita colaboração entre os órgãos do Judiciário, do Executivo e do Ministério Público, direcionada à superação dos problemas que, além de empalidecerem a efetividade da lei, atrapalham o fortalecimento das instituições democráticas no País.
Pressuposto dessa integração de ações é o reconhecimento da extensão do problema e da própria responsabilidade de cada uma das instituições ligadas ao sistema carcerário. O momento é de abandonar a postura da transferência de culpas para abraçar a da corresponsabilidade, com planejamento e atuação articulados. Por ação ou omissão, o tirano nessa história não pode ser mais o Estado brasileiro, cujo crescimento econômico,em plena crise mundial, tem despertado admiração nos quatro cantos do mundo. Passa da hora de o País alçar ao ranking exemplar da responsabilidade social, garantindo, minimamente, proteção aos direitos fundamentais, sobretudo dos segmentos mais vulneráveis da população.
Comecemos pelo óbvio: preso é gente. E gente precisa de alimento, educação e trabalho. No Brasil, porém, a realidade às vezes consegue revogar até axiomas. Aqui,os presídios não são casas correcionais socializadoras, mas depósitos de seres humanos que, lá chegando, se transformam em coisas — pelo menos aos olhos apáticos da maioria — e como tal são amiúde tratados. Essa constatação vem sendo escancarada diariamente ao País, desde que o Conselho Nacional de Justiça pôs em execução o Programa dos Mutirões Carcerários. As deficiências são de toda ordem: desde a já conhecida superpopulação, a exigir investimentos muito mais consistentes na estrutura carcerária, até o lixo acumulado e a infestação por ratos, cuja solução é de simplicidade absoluta.
No âmbito do sistema de justiça, faltam técnicos e estrutura mínima de funcionamento em algumas varas de execuções penais. Enquanto escasseiam defensores, sobram processos aguardando instrução, num quadro em que o excesso de prazo passa a ser a regra. De fato, os mutirões carcerários constataram um inadmissível déficit de mais de 167 mil vagas no sistema prisional — que hoje mantém mais de 473 mil pessoas e cresce em média 7,11% ao ano. Esse número é ainda mais grave se considerados os milhares de mandados de prisão que ainda não foram cumpridos. Sem dúvida,o total gasto pela União no ano passado para construção de presídios é insuficiente e não atinge sequer 3%.
Dos recursos essenciais para a criação dessas vagas. A ineficiência sistêmica é mais flagrante no paradoxo de que milhares de réus encontram-se soltos, sem perspectiva de julgamento, ao tempo em que outros tantos se acham ilegalmente encarcerados, com excesso de prazo na prisão cautelar ou no cumprimento da pena. E o mais aviltante: muitos presidiários cumprem, provisoriamente, penas que ultrapassam o teto legal fixado para o delito que cometeram. É para reverter tais ignomínias que o CNJ trabalha. Em um ano e meio de trabalho e após examinados mais de 111 mil processos,foram concedidos cerca de 34 mil benefícios previstos na Lei de Execução Penal, entre os quais mais de 20,7 mil liberdades. Em outras palavras, por dia, 36 pessoas indevidamente encarceradas reouveram o vital direito à liberdade.
Quanto à racionalização dos gastos — decisiva num sistema carcerário em que a superlotação é a regra —, os mutirões resultaram na realocação de vagas equivalentes à capacidade de 40 presídios médios. Não é pouco,mas há muito ainda por fazer. A Lei de Execuções Penais determina que os condenados trabalhem ou tenham acesso ao ensino fundamental. Todavia, recente tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro revela que, em 2008, a média de presos sem trabalho gira em torno de 76% e apenas 17,3% estudam. Também de acordo com a pesquisa, entre os detidos que trabalham, a probabilidade de reincidência cai a 48%. Para os que estudam, reduz-se a 39%. Ora,o alto índice de reincidência demonstra que o sistema prisional não atende ao seu principal objetivo — recuperar, reabilitando ao convívio social, aqueles que tiveram a desventura de infringir a lei.
Ainda que não resolvam, por si sós, a grave situação por que passa o sistema de justiça criminal, os mutirões descortinaram, jogando luz sobre o incômodo quadro, uma realidade que a população brasileira, em geral,e o Estado,em particular, preferiam ignorar, como se o problema não existisse ou não lhes fosse pertinente. Os explosivos indicadores da violência urbana, o aumento da criminalidade e da sensação de insegurança demonstram às escâncaras que o problema se agrava a olhos vistos e precisa ser resolvido com medidas pragmáticas e não paliativas,a exemplo das parcerias que o CNJ vem fazendo com órgãos públicos e com a comunidade para viabilizar a capacitação profissional necessária à reinserção dos presos na sociedade, além do acesso a serviços básicos como a previdência e assistência social.
No abrangente conjunto de ações desenvolvidas pelo CNJ para viabilizar a efetiva reinserção de egressos, destacam-se projetos como o Começar de Novo, a Advocacia Voluntária, o Recambiamento de Presos e até a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (Lei 12.106/09), no âmbito do CNJ, verdadeiros legados estruturantes dos mutirões carcerários, com frutos até mesmo no plano da justiça criminal. Não por outro motivo, o 3º Encontro Nacional do Judiciário,
Realizado no início do ano, elegeu o ano de 2010 o ano da justiça criminal. De fato, os mutirões nos dão uma aula de Brasil, cujas revelações ensinam que apenas um esforço conjunto, sério e planejado pode virar essa página tão triste e calamitosa,tanto do ponto de vista dos direitos humanos como da segurança pública. Daí a elaboração de ampla Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, alicerçada em estreita colaboração entre os órgãos do Judiciário, do Executivo e do Ministério Público, direcionada à superação dos problemas que, além de empalidecerem a efetividade da lei, atrapalham o fortalecimento das instituições democráticas no País.
Pressuposto dessa integração de ações é o reconhecimento da extensão do problema e da própria responsabilidade de cada uma das instituições ligadas ao sistema carcerário. O momento é de abandonar a postura da transferência de culpas para abraçar a da corresponsabilidade, com planejamento e atuação articulados. Por ação ou omissão, o tirano nessa história não pode ser mais o Estado brasileiro, cujo crescimento econômico,em plena crise mundial, tem despertado admiração nos quatro cantos do mundo. Passa da hora de o País alçar ao ranking exemplar da responsabilidade social, garantindo, minimamente, proteção aos direitos fundamentais, sobretudo dos segmentos mais vulneráveis da população.
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