domingo, 20 de setembro de 2009

Agressões a que jovens são submetidos provocam mudanças de comportamento e fazem da vítima o algoz



Adriana Bernardes e Erika Klingl - Do Correio Braziliense

Antes de explodir em socos e pontapés, a violência protagonizada pelos jovens se manifesta de forma sorrateira. Algumas vezes começa no seio familiar, que, por princípio, deveria ser reduto absoluto de proteção. Nem sempre a agressão é física. Ela está mascarada por olhares e gestos ameaçadores, no abandono familiar ou no bullying dos colegas. Uma rotina que, em boa parte das vezes, transforma vítimas em algozes, não apenas na rede pública como também nas escolas particulares.

Acuados, esses jovens reproduzem a violência sofrida como se clamassem por socorro. Os gritos ecoam nas salas de aula e acabam registrados no Livro de Ocorrência das instituições de ensino e em pastas confidenciais, quando o caso é mais grave. Durante três dias, o Correio percorreu escolas públicas de cidades ao redor de Brasília e também no Plano Piloto. Os relatos impressionam pela crueldade a que meninos e meninas são submetidos quando têm seus direitos fundamentais violados.
As evidências de que algo grave está acontecendo com a criança podem estar na queda do rendimento escolar, numa tristeza repentina, nas respostas malcriadas para professores ou colegas. De olho nas mudanças de comportamento de Marisa, 14 anos, a direção da escola descobriu que menina era violentada pelo padrasto desde os 9. Já a dor de Robson, 17, é na alma. Faltam-lhe dois dentes da frente. Por isso, ele evita sorrir a qualquer custo. Não quer ser motivo de chacota dos colegas. Quando a tristeza de ser abandonada pela mãe é maior do que Letícia pode suportar, ela esmurra ou se joga contra a parede.

Especialistas ouvidos pelo Correio concordam que jovens violentos muitas vezes reproduzem a violência sofrida. Um dos desafios é fortalecer a rede de proteção. Um trabalho que já foi iniciado pela Secretaria de Educação. Mas a escola não é a única responsável. Toda a rede — assistência social e saúde, por exemplo — precisa atuar de forma articulada antes que a violação dos direitos resulte em agressões físicas e até na morte desses garotos.

Em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, os nomes das crianças citadas na reportagem são fictícios, assim como os nomes dos profissionais de educação.

Intimidações

São todas as formas de atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder. Essas ações intimidam a vítima. O bullying ocorre em atos como colocar apelidos, gozar, sacanear, discriminar, ignorar, entre outros (Fonte: www.bullying.com.br)

Fuga da rotina


É um caderno grande, com capa dura, no qual é relatado qualquer fato que foge à rotina escolar, como briga entre jovens ou desacato a professor.

Casos de violência

Sexo e prostituição

Trazer à tona a dor desses meninos exige sensibilidade e paciência. No caso de Marisa, 14 anos, os abusos sexuais do padrasto e as acusações da mãe de que ela seduzia seu agressor se manifestaram de duas formas. Ela praticamente abandonou a escola. Quando vai, ela sofre desmaios, queixa-se de fortes dores de cabeça ou enjoos. No último ano, a situação piorou. Ela confiou parte de seu drama a uma professora, que, pela gravidade do caso, acionou o orientador educacional, Maurício, 27 anos.

Após três encontros, Marisa se abriu. “Ela é filha adotiva. Os pais se separaram e a mãe casou-se pela segunda vez. Ela conta que o padrasto a violenta e a mãe não acredita”, relata Maurício. A menina escreveu duas cartas para Maurício. Numa delas, diz que vai para o inferno e que seu destino é morrer. “Quando li aquilo, senti um pavor enorme.” Maurício denunciou o caso ao Conselho Tutelar em junho de 2008, onde o assunto é tratado com sigilo absoluto.

O fato é que, passado mais um ano, Marisa está cada vez mais longe da sala de aula. Disse a Maurício que, apesar da reunião com o Conselho Tutelar, tudo continua como antes. Inclusive as tentativas do padrasto em violentá-la depois que a mãe adotiva vai dormir. “Recentemente, descobrimos que ela está se prostituindo”, conta Maurício. Perguntado como se sente ao saber que Marisa ainda é vítima de violência, Maurício respira fundo. “Descrença é a palavra. Me sinto muito mal. A sensação é a de que o trabalho de encontrar a violência e denunciá-la é inútil. Não tem muito resultado.”

A falta que o riso faz

Apesar da pouca idade, a rotina desses jovens tem um peso enorme sobre seus ombros. O drama de menino que esconde o riso para evitar zombarias é comovente. Há cerca de um mês, ele procurou a orientadora educacional Maria e pediu, repetidas vezes, a transferência para outra turma. “Ninguém leva nada a sério. Eles (colegas) não querem saber de estudar. Por favor, me troca de turma?”, insistiu Robson.

Robson perdeu a espontaneidade do sorriso quando dois dentes da frente caíram. “Fui atropelado quando tinha 7 anos e fiquei 15 dias em coma. Tomei muito antibiótico. Aí, meus dentes ficaram fracos”, conta. Desde então, ele tornou-se vítima de um tipo de violência que não deixa marcas físicas, mas provoca uma imensa dor na alma: o bullying. “Perdi um ano (de escola) porque os meninos ficavam zombando de mim. Ninguém fez nada. Eu preferi largar tudo para não fazer nenhuma besteira.”

O menino não segura as lágrimas. Mantém a cabeça baixa e a mão a esconder a boca. “Raramente eu sorrio, tenho vergonha. Eles (os colegas) perguntam: ‘Ei, esse dente aí tá nascendo ou tá caindo?’. Eu não guardo rancor de ninguém. Mas fica aquele negócio assim no peito, sabe?” Filho de pais separados, Robson mora com a avó.

Há cerca de um mês e meio, Maria foi ao posto de saúde pedir um tratamento dentário para Robson. “Por falta dos dentes, ele tem autoestima muito baixa. É introvertido e tem dificuldade de se expor. Quando fala em sala de aula, os outros riem”, explicou. Maria procurou a Coordenação de Odontologia da Secretaria de Saúde. Até a última sexta-feira, ela não tinha recebido nenhuma resposta.

Colégio, porto seguro

Os muros do colégio tornaram-se um porto seguro para Pedro, 17 anos. Fora dos limites da escola, ele vive amedrontado. Nunca faz o mesmo caminho de casa para a instituição de ensino. Vive sob a ameaça de traficantes por conta de uma dívida de R$ 1 mil em drogas. Um mundo que o jovem tenta deixar para trás após cumprir 45 dias de internação no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje).

Desde que saiu da instituição, ele cumpre medida socioeducativa de liberdade assistida. Está matriculado na escola e mantém notas boas, apesar da insegurança que vive. “Pode-se dizer que está numa prisão domiciliar. Ele sempre fica trancado em casa para não ser visto pelos traficantes. Os pais têm medo de pagar a dívida e a situação se agravar ainda mais”, conta a orientadora educacional Laís.

A situação de risco de Pedro e dos pais dele preocupa a direção do colégio. Laís pediu ajuda aos profissionais do Centro de Referência Especial de Assistência Social (Creas). “Precisamos conseguir um lugar seguro, onde a família se sinta segura. O Pedro comenta que, se quisesse ter uma arma, conseguiria fácil. Mas não é este o caminho que ele quer seguir. A angústia que esse menino sente eu também sinto. Queria poder fazer mais”, lamenta Laís.

Quero minha mãe

Pelo menos duas escolas visitadas pelo Correio estão sem orientador educacional, que é a pessoa preparada para lidar com os problemas mais graves envolvendo os alunos. Na falta desse profissional, professores e diretores fazem o que podem. É o caso da professora Elaine. Há pelo menos um ano, ela tenta ajudar Letícia, 15 anos. A menina não aceita o abandono da mãe, que a deixou sob os cuidados de uma tia. Está com dificuldade de aprendizagem e de relacionamento com colegas e professores.

Pelo olhar de Letícia, Elaine percebeu que ela queria ajuda, mas não conseguia pedir. Chamou-a para conversar e levou um susto. “Ela se levantou e começou a chorar e a esmurrar a parede. Percebi a gravidade da situação.” Depois de acalmar a menina, Elaine correu para o banheiro. “Fui chorar. Meu coração ficou… nem sei dizer. Eu me senti completamente impotente. Não tenho formação profissional para agir em situações como essa, conto apenas com meus instintos. Faço o que faria se fosse uma pessoa da minha família.”

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