quarta-feira, 24 de março de 2010

Ditadura ainda ecoa no sistema prisional brasileiro

Após 25 anos do término da ditadura militar, resquícios da repressão continuam. O que resta da ditadura, livro da Boitempo, revela que práticas do regime verde-oliva estão vigentes na sociedade brasileira

Por Lúcia Rodrigues - da Caros Amigos


A persistência da prática da tortura em delegacias e estabelecimentos prisionais é um dos resquícios da ditadura militar ainda nos dias de hoje. O doutor em filosofia política pela USP e um dos organizadores do livro O que resta da ditadura, Edson Teles, conversou com a reportagem da Caros Amigos sobre o tema. Acompanhe os principais trechos da entrevista.

Caros Amigos - O que ainda resta da ditadura militar após 25 anos de seu término?
Edson Teles – A cultura da impunidade persiste e há uma prática da violência por parte do sistema de segurança pública que herdamos da ditadura. Até hoje ocorrem torturas nas delegacias, instituições de detenção de adolescentes, no sistema prisional. É claro que o torturado não é mais o militante político, mas os excluídos de cidadania. Ainda há grande resistência dos governos democráticos em abrirem os arquivos das Forças Armadas e em apurarem a verdade sobre aquele período.

Caros Amigos – Recentemente foram descobertos os restos mortais de um combatente da Guerrilha do Araguaia. Mas isso foi conseguido ao largo da comissão constituída pelo Jobim. O Ministério da Defesa não tem interesse em apurar onde estão os desaparecidos do Araguaia?
Edson Teles – Esse é um dos sintomas da presença autoritária na nossa democracia. Essa comissão que o Jobim determinou que os militares coordenassem foi criada por causa de um processo movido pelos familiares dos guerrilheiros desde 1982 e que teve ganho de causa final em 2007. Foram 25 anos de processo para ter o ganho de causa. A sentença da juíza determinou que fossem localizados os corpos, identificadas as circunstâncias em que ocorreram as mortes e as responsabilidades sobre elas. O governo não tendo mais para onde recorrer judicialmente, o governo democrático como o governo Lula, simplesmente não foi atrás desses corpos. O que ocorreu é que no ano passado a corte interamericana de direitos humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) abriu um processo contra o Brasil por não cumprir uma medida da Justiça. Como reação a abertura desse processo, o governo montou essa comissão. Mas o mais estranho dessa comissão é que entregaram exatamente àqueles que foram os algozes, a instituição Forças Armadas que operou essas mortes e desaparecimentos, o comando das buscas. Não estiveram nesse processo as entidades de familiares vítimas da ditadura. Foi um processo perverso. Não dá para aceitar em uma democracia que o Estado que detém esses arquivos e tem o poder de ouvir as pessoas que têm a informação sobre a localização dos corpos não faça nada. Os familiares é que localizaram a sepultura do guerrilheiro. O familiar chegou à sepultura porque obteve informações com um agente de segurança do Estado. Essa comissão deveria ter feito a consulta a esses agentes antes de ir lá fazer a busca. Não dá para aceitar que em uma democracia o Estado não realize isso.

Caros Amigos – Por que o governo Lula não leva adiante essa investigação e não abre os arquivos da ditadura? O que impede isso? A direita é tão forte assim? Do que se tem medo?
Edson Teles – É uma série de relações de poder político e econômico. Não é só o governo Lula, mas os governos democráticos após a transição. Hoje estamos no quarto mandato desses governos e em nenhum houve punição dos responsáveis, abertura de arquivos e apuração das circunstâncias das mortes. Vemos que um grande poder econômico está nas mãos das Forças Armadas. O Brasil está comprando submarino nuclear, aviões de caça... A política do Estado brasileiro quer criar uma grande potência na América Latina e para a criação dessa potência se mantém esses setores que estiveram no comando da ditadura militar. Esses governos democráticos por um lado promovem as suas memórias e por outro escondem a verdade sobre o passado. Negociam com esses setores.

Caros Amigos – Você considera que o governo tem receio de uma reação contundente desses militares?
Edson Teles – Não temem um golpe militar, porque isso, hoje, não faz parte da política internacional.

Caros Amigos - Mas você acredita que há muitos generais Santa Rosa ou são uma minoria nas Forças Armadas?
Edson Teles – Não conheço tão bem. Mas acredito que há generais que estão na ativa, mas não querem ser processados.

Caros Amigos – Ele diz que vai fazer um pronunciamento no dia 31 de março...
Edson Teles – Todo 31 de março eles têm feito pronunciamentos. Mas esse pronunciamento ganha uma nova configuração diante da possibilidade de se montar a Comissão da Verdade. Generais da ativa declararem apoio à repressão política é estrondoso e pode provocar mais barulho. Mas eles têm comemorado a ditadura nos últimos 25 anos, todo dia 31 de março.

Caros Amigos - E qual é a sua expectativa em relação à Comissão da Verdade?
Edson Teles – Acho que deve demorar. Sabemos como funciona o Congresso Nacional e vai ter eleição. Espero que tenha total transparência. É preciso que a sociedade brasileira participe, não pode surgir de uma reunião entre Ministério da Defesa, Secretaria de Direitos Humanos, Presidência da República. Deve surgir de um amplo debate nacional. Devem ser nomes com reconhecido valor social e político.

Caros Amigos – Uma comissão de notáveis?
Edson Teles – Sim. Uma comissão de notáveis, que esteja interessada em fazer esse trabalho. Essa comissão deve ser transparente ao ponto de permitir a fiscalização. Além disso, deve ter total autonomia do Estado brasileiro, deve ter orçamento e estrutura próprios de funcionamento. Mas é bom ressaltar que uma comissão da verdade não substitui a justiça. Apurar a verdade em uma comissão é um ato político e ético da sociedade, mas os criminosos que cometeram graves violações de direitos humanos durante a ditadura têm de passar por um processo dentro do direito penal brasileiro.

Caros Amigos – Você acredita que o projeto de lei que institui a Comissão da Verdade seja votado este ano?
Edson Teles – Eu duvido muito. Vai ser entregue em abril. E abril é justamente o mês da largada da campanha eleitoral. Não se pode esquecer que o Congresso nacional é presidido pelo José Sarney, um dos maiores lideres da ditadura militar, é uma das coisas que resta da ditadura.

Caros Amigos – Mas por ser um ano eleitoral dá para envolver os candidatos nessa temática?
Edson Teles – Um dos maiores êxitos da Secretaria Nacional de Direitos Humanos foi incluir esse tema este ano. Os candidatos vão ter de se posicionar.


Resenha do Livro:

Título: O que resta da ditadura
Subtítulo: a exceção brasileira
Autor(a): Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs.)
Prefácio: Edson Teles e Vladimir Safatle
Páginas: 352
Ano de publicação: 2010
ISBN: 978-85-7559-155-0
Preço: R$ 52,00

Quem controla o passado,controla o futuro. (George Orwell, 1984)

Bem lembrada pelo escritor norte-americano, na frase que serve de epígrafe ao livro, a importância do passado no processo histórico que determinará o porvir de uma nação é justamente o que torna fundamental esta obra. Organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, O que resta da ditadura reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira.

Fruto de um seminário realizado na Universidade de São Paulo (USP), em 2008, o livro reúne textos de escritores e intelectuais como Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Paulo Arantes e Ricardo Lísias, que buscam analisar o que permanece de mais perverso da ditadura no país hoje. Assim, o livro possui também um caráter de resistência à lógica de negação difundida por aqueles que buscam hoje ocultar o passado recente, seja ao abrandar, amenizar ou simplesmente esquecer este período da história brasileira.

Segundo Edson Teles e Vladimir Safatle, a palavra que melhor descreve esta herança indesejada é “violência” - medida não pela contagem de mortos deixados para trás, mas por meio das marcas encravadas no presente. Para os organizadores, “neste sentido, podemos dizer com toda a segurança: a ditadura brasileira foi a mais violenta que o ciclo negro latino-americano conheceu. Quando estudos demonstram que, ao contrário do que aconteceu em outros países da América Latina, as práticas de tortura em prisões brasileiras aumentaram em relação aos casos de tortura na ditadura militar; quando vemos o Brasil como o único país sul-americano onde torturadores nunca foram julgados, onde não houve justiça de transição, onde o Exército não fez um mea culpa de seus pendores golpistas; quando ouvimos sistematicamente oficiais na ativa e na reserva fazerem elogios inacreditáveis à ditadura militar; quando lembramos que 25 anos depois do fim da ditadura convivemos com o ocultamento de cadáveres daqueles que morreram nas mãos das Forças Armadas; então começamos a ver, de maneira um pouco mais clara, o que significa exatamente ‘violência’.”

Sobre os organizadores

Edson Teles é doutor em filosofia política pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de Ética e Direitos Humanos do curso de Pós-Graduação da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban). Organizou, com Cecília MacDowell Santos e Janaína de Almeida Teles, o livro Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil (São Paulo, Hucitec, 2009).

Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus. Escreveu A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo, Edunesp, 2006), Lacan (São Paulo, Publifolha, 2007), Cinismo e falência da critica (São Paulo, Boitempo, 2008) e Fetichismo (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, no prelo), entre outros.


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