Marina Lemle - do Comunidade Segura
Durante décadas, o coronel da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) Jorge da Silva (foto) achou que os usuários de drogas alimentavam o tráfico e que deveriam ser perseguidos e punidos com o mesmo rigor que os traficantes. Depois, passou a achar que usuários precisavam de cuidados médicos. Acreditava que o álcool que ele próprio consumia razoavelmente era aceitável, mas maconha e cocaína não. Confundia usuários e dependentes.
Hoje, o coronel apoia campanhas pela descriminalização da maconha e acha importante considerar o exemplo de Portugal, que em 2001 descriminalizou todas as drogas e desde então não registrou aumento no consumo.
Mas o que levou o coronel Jorge da Silva, que ocupou altos cargos na cúpula da PM e do governo - foi chefe do Estado Maior e subsecretário de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro – a mudar de opinião?
“Percebi que aquele modelo não adiantava nada, pelo contrário, só fazia aumentar os confrontos e as mortes - de bandidos, de policiais e de pessoas que não tinham nada com a história”, explicou em seu discurso na primeira mesa da II Conferência Latino-americana sobre Políticas de Drogas.
O evento, realizado em 26 e 27 de agosto, na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, no Centro do Rio de Janeiro, reuniu especialistas de 13 países, entre acadêmicos, representantes de governos e ativistas, além de um público de cerca de 200 pessoas.
O coronel qualificou como insano o modelo repressivo. “Não é a polícia e nem a prisão que vão equacionar a questão”, enfatizou. Ele contestou as práticas adotadas no mundo inteiro para conter o uso e o tráfico de drogas e acredita que o suposto objetivo da chamada guerra às drogas de se chegar a um mundo sem elas é apenas um pretexto. “É tão irracional que não é possível que seus formuladores sejam tão ingênuos”, ironizou.
Para o coronel Jorge da Silva, esta é uma questão política de direitos humanos que diz respeito a toda população mundial, que é direta ou indiretamente afetada pelos danos coletivos e a matança desenfreada gerada por essa política. “A ONU é o bastião dos direitos humanos, mas estamos aqui lutando para que mude seu ponto de vista, baseado numa premissa falsa colocada pelos Estados Unidos”, disse. Ex-secretário estadual de Direitos Humanos, o coronel defende uma mudança que coloque o foco na prevenção. “Com valores, família e conscientização vamos conseguir muito mais”, acredita.
Questão de saúde pública
A tônica do evento foi a importância da mudança de paradigma na política de drogas e o papel do Brasil neste processo. O psicólogo Luiz Paulo Guanabara, diretor-presidente da ONG Psicotropicus, uma das organizadoras do evento, destacou a urgência da desmilitarização da política de drogas e da descriminalização do seu uso. Ele alertou para o estigma e a intolerância que transforma usuários em criminosos, afastando-os do sistema de saúde.
“A criminalização atrapalha a prevenção e o tratamento das doenças associadas ao uso de drogas”, afirmou. Para ele, as drogas deveriam ser controladas e reguladas, já que na proibição acabam entregues a grupos de criminosos, que com poder econômico e bélico geram violência.
Para Graciela Touzé, da ONG argentina Intercambios, também organizadora do evento, o direito à saúde é indissociável dos direitos humanos. Ela defendeu a implementação de políticas que cheguem às pessoas e a interação das políticas sociais e econômicas
A professora Luciana Boiteux (foto), coordenadora de graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, disse esperar que o evento resulte na concretização de medidas para uma política de drogas mais humana, com foco na saúde pública. “O Brasil tem posição avançada nesse tema”, disse.
O coordenador geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Godinho Delgado, que representou o ministro da Saúde José Gomes Temporão, afirmou que o campo da saúde pública é crucial para a construção de uma política que não adote posturas rígidas e repressivas.
Ele afirmou que a Saúde fica na berlinda, sob cobrança permanente, e precisa dar respostas consistentes que convençam a sociedade que o caminho para uma melhor política é o da inclusão e do tratamento, e não da repressão. Para alcançar respostas efetivas sustentáveis de longo prazo, Delgado conclamou a participação da sociedade, de usuários e de ONGs, através da organização de redes. “A intensa politização do debate vai gerar resultados positivos. É uma questão para sociedade debater”, acredita.
O representante do Ministério as Saúde também realçou a importância da intensificação do debate no ambiente latino-americano na superação de barreiras que pareciam intransponíveis, como a aceitação das diferenças de concepção. “Devemos construir de fato políticas públicas que aproximem os países latino-americanos e que dialoguem entre si. O Brasil é um protagonista essencial para a construção de uma nova política de drogas em nosso continente”, afirmou.
Segundo Delgado, o país está vivendo momentos de decisão muito significativos, como a nova Lei de Drogas, de 2006, que busca diminuir o encarceramento associado a delitos por drogas. Ele acrescentou que o governo já está trabalhando na revisão dessa lei para torná-la ainda mais flexível deixando clara a diferença entre o usuário de drogas e o traficante. O novo texto está sendo elaborado por um grupo coordenado pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) e depois será encaminhado para apreciação do Congresso Nacional.
Direitos humanos e cooperação regional
Figura importante nesse processo de mudança de paradigmas, o jovem secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay, representando o ministro da Justiça, Luiz Paulo Telles Barreto, elogiou o esforço latino-americano de buscar construir sua própria política de drogas, “em vez de usar a que lhe foi imposta”. Abramovay enfatizou a importância de a região se libertar da mentalidade colonizada nas áreas econômica e de políticas sociais e afirmou que ela ganhou quando conseguiu ver que poderia ter um modelo de desenvolvimento diferente.
Segundo o secretário, o Brasil tem um papel importante nesse processo de cooperação regional. “Temos uma fronteira seca de 15 mil quilômetros e uma fronteira marítima de sete a oito mil quilômetros. É impossível pensar uma política que ignore a relação com os vizinhos. Não se pode construir um muro que isole os vizinhos da política. A ideia é construir pontes, construir cooperação para o desenvolvimento, soluções duradoras que respeitem os direitos humanos”, defendeu.
Para Abramovay (foto), há disposição para isso tanto por parte do governo brasileiro quanto dos governos de outros países da região. “Alguns países da América Latina começam a ver políticas gestadas na própria América Latina como a única solução para os problemas da região. Que este seja apenas o começo de uma grande transformação”, disse.
Abramovay fez fortes críticas à política de drogas baseada no direito penal. Para ele, este modelo será sempre violador dos direitos humanos. “O direito penal como é pensado e usado na sociedade tem sido um instrumento de restrição dos direitos humanos”, afirmou.
De acordo com Abramovay, no neoliberalismo, onde cada indivíduo é responsável pelos seus atos, a maneira de lidar com o delito é botar o indivíduo na cadeia. “Os Estados Unidos são o maior retrato do resultado: 2,5 milhões de pessoas presas, sendo muito mais pobres e negros”, exemplificou.
Para ele, o modelo fracassou porque se mostrou inadequado para reduzir incidência de delitos e porque o que gerou sem ser seu objetivo é “absolutamente desastroso”. “O direito penal é um instrumento perverso para todas as áreas, mas ainda mais para as drogas”, concluiu.
De acordo com Abramovay, o crime é um fato social, e existir uma lei penal não é suficiente para evitar condutas que rompem com o contrato penal. “A ideia não faz sentido”, sintetizou. Segundo ele, o Estado social muda isso, trazendo a ideia de que questões sociais que interferissem na sociedade e no indivíduo seriam mais eficazes.
Durante décadas, o coronel da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) Jorge da Silva (foto) achou que os usuários de drogas alimentavam o tráfico e que deveriam ser perseguidos e punidos com o mesmo rigor que os traficantes. Depois, passou a achar que usuários precisavam de cuidados médicos. Acreditava que o álcool que ele próprio consumia razoavelmente era aceitável, mas maconha e cocaína não. Confundia usuários e dependentes.
Hoje, o coronel apoia campanhas pela descriminalização da maconha e acha importante considerar o exemplo de Portugal, que em 2001 descriminalizou todas as drogas e desde então não registrou aumento no consumo.
Mas o que levou o coronel Jorge da Silva, que ocupou altos cargos na cúpula da PM e do governo - foi chefe do Estado Maior e subsecretário de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro – a mudar de opinião?
“Percebi que aquele modelo não adiantava nada, pelo contrário, só fazia aumentar os confrontos e as mortes - de bandidos, de policiais e de pessoas que não tinham nada com a história”, explicou em seu discurso na primeira mesa da II Conferência Latino-americana sobre Políticas de Drogas.
O evento, realizado em 26 e 27 de agosto, na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, no Centro do Rio de Janeiro, reuniu especialistas de 13 países, entre acadêmicos, representantes de governos e ativistas, além de um público de cerca de 200 pessoas.
O coronel qualificou como insano o modelo repressivo. “Não é a polícia e nem a prisão que vão equacionar a questão”, enfatizou. Ele contestou as práticas adotadas no mundo inteiro para conter o uso e o tráfico de drogas e acredita que o suposto objetivo da chamada guerra às drogas de se chegar a um mundo sem elas é apenas um pretexto. “É tão irracional que não é possível que seus formuladores sejam tão ingênuos”, ironizou.
Para o coronel Jorge da Silva, esta é uma questão política de direitos humanos que diz respeito a toda população mundial, que é direta ou indiretamente afetada pelos danos coletivos e a matança desenfreada gerada por essa política. “A ONU é o bastião dos direitos humanos, mas estamos aqui lutando para que mude seu ponto de vista, baseado numa premissa falsa colocada pelos Estados Unidos”, disse. Ex-secretário estadual de Direitos Humanos, o coronel defende uma mudança que coloque o foco na prevenção. “Com valores, família e conscientização vamos conseguir muito mais”, acredita.
Questão de saúde pública
A tônica do evento foi a importância da mudança de paradigma na política de drogas e o papel do Brasil neste processo. O psicólogo Luiz Paulo Guanabara, diretor-presidente da ONG Psicotropicus, uma das organizadoras do evento, destacou a urgência da desmilitarização da política de drogas e da descriminalização do seu uso. Ele alertou para o estigma e a intolerância que transforma usuários em criminosos, afastando-os do sistema de saúde.
“A criminalização atrapalha a prevenção e o tratamento das doenças associadas ao uso de drogas”, afirmou. Para ele, as drogas deveriam ser controladas e reguladas, já que na proibição acabam entregues a grupos de criminosos, que com poder econômico e bélico geram violência.
Para Graciela Touzé, da ONG argentina Intercambios, também organizadora do evento, o direito à saúde é indissociável dos direitos humanos. Ela defendeu a implementação de políticas que cheguem às pessoas e a interação das políticas sociais e econômicas
A professora Luciana Boiteux (foto), coordenadora de graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, disse esperar que o evento resulte na concretização de medidas para uma política de drogas mais humana, com foco na saúde pública. “O Brasil tem posição avançada nesse tema”, disse.
O coordenador geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Godinho Delgado, que representou o ministro da Saúde José Gomes Temporão, afirmou que o campo da saúde pública é crucial para a construção de uma política que não adote posturas rígidas e repressivas.
Ele afirmou que a Saúde fica na berlinda, sob cobrança permanente, e precisa dar respostas consistentes que convençam a sociedade que o caminho para uma melhor política é o da inclusão e do tratamento, e não da repressão. Para alcançar respostas efetivas sustentáveis de longo prazo, Delgado conclamou a participação da sociedade, de usuários e de ONGs, através da organização de redes. “A intensa politização do debate vai gerar resultados positivos. É uma questão para sociedade debater”, acredita.
O representante do Ministério as Saúde também realçou a importância da intensificação do debate no ambiente latino-americano na superação de barreiras que pareciam intransponíveis, como a aceitação das diferenças de concepção. “Devemos construir de fato políticas públicas que aproximem os países latino-americanos e que dialoguem entre si. O Brasil é um protagonista essencial para a construção de uma nova política de drogas em nosso continente”, afirmou.
Segundo Delgado, o país está vivendo momentos de decisão muito significativos, como a nova Lei de Drogas, de 2006, que busca diminuir o encarceramento associado a delitos por drogas. Ele acrescentou que o governo já está trabalhando na revisão dessa lei para torná-la ainda mais flexível deixando clara a diferença entre o usuário de drogas e o traficante. O novo texto está sendo elaborado por um grupo coordenado pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) e depois será encaminhado para apreciação do Congresso Nacional.
Direitos humanos e cooperação regional
Figura importante nesse processo de mudança de paradigmas, o jovem secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay, representando o ministro da Justiça, Luiz Paulo Telles Barreto, elogiou o esforço latino-americano de buscar construir sua própria política de drogas, “em vez de usar a que lhe foi imposta”. Abramovay enfatizou a importância de a região se libertar da mentalidade colonizada nas áreas econômica e de políticas sociais e afirmou que ela ganhou quando conseguiu ver que poderia ter um modelo de desenvolvimento diferente.
Segundo o secretário, o Brasil tem um papel importante nesse processo de cooperação regional. “Temos uma fronteira seca de 15 mil quilômetros e uma fronteira marítima de sete a oito mil quilômetros. É impossível pensar uma política que ignore a relação com os vizinhos. Não se pode construir um muro que isole os vizinhos da política. A ideia é construir pontes, construir cooperação para o desenvolvimento, soluções duradoras que respeitem os direitos humanos”, defendeu.
Para Abramovay (foto), há disposição para isso tanto por parte do governo brasileiro quanto dos governos de outros países da região. “Alguns países da América Latina começam a ver políticas gestadas na própria América Latina como a única solução para os problemas da região. Que este seja apenas o começo de uma grande transformação”, disse.
Abramovay fez fortes críticas à política de drogas baseada no direito penal. Para ele, este modelo será sempre violador dos direitos humanos. “O direito penal como é pensado e usado na sociedade tem sido um instrumento de restrição dos direitos humanos”, afirmou.
De acordo com Abramovay, no neoliberalismo, onde cada indivíduo é responsável pelos seus atos, a maneira de lidar com o delito é botar o indivíduo na cadeia. “Os Estados Unidos são o maior retrato do resultado: 2,5 milhões de pessoas presas, sendo muito mais pobres e negros”, exemplificou.
Para ele, o modelo fracassou porque se mostrou inadequado para reduzir incidência de delitos e porque o que gerou sem ser seu objetivo é “absolutamente desastroso”. “O direito penal é um instrumento perverso para todas as áreas, mas ainda mais para as drogas”, concluiu.
De acordo com Abramovay, o crime é um fato social, e existir uma lei penal não é suficiente para evitar condutas que rompem com o contrato penal. “A ideia não faz sentido”, sintetizou. Segundo ele, o Estado social muda isso, trazendo a ideia de que questões sociais que interferissem na sociedade e no indivíduo seriam mais eficazes.
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