Por Cecília Olliveira
O artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90) consagra o princípio da proteção integral. É com base neste texto, dentre outros, que o Juiz José Brandão Netto, implanta o “Toque de Acolher” em cidades da Bahia.
Brandão Netto justifica que esta foi a alternativa que encontrou para mudar o contexto da criminalidade pelas cidades onde passou. “A delinquência juvenil vinha numa crescente na Região de Santo Estevão-BA, que é cortada pela BR 116, conhecida como rodovia Rio-Bahia, tendo o crack tomando conta do interior, chegando a pedra da droga a ser vendida por R$0,50. A comunidade, incomodada com a situação, passou a cobrar medidas que pudessem mudar esta triste realidade. Pedofilia e prostituição infantil eram recorrentes da Rodovia referida, em regra, praticada alguns caminhoneiros”. Polêmico, o juiz é o mesmo que condenou um adolescente de 17 anos a freqüentar missas aos domingos após bater em um muro de uma igreja, dirigindo inabilitado.
De acordo com o juiz, atualmente cerca de 70 cidades, em 19 estados, adotam a medida de recolhimento de crianças e adolescentes nas ruas quando fora do horário estabelecido pela Comarca. Na área de atuação do magistrado, as crianças e adolescentes desacompanhadas de seus responsáveis legais ou acompanhantes, são proibidas de permanecer nas ruas ou em locais públicos, espaços comunitários, bailes, festas, promoções dançantes, shows e boates, inclusive em Lan Houses e congêneres, nos seguintes horários: até de 12 anos não podem permanecer depois das 20h30; entre 13 e 15 anos devem retornar para casa até às 22h e para adolescentes entre 16 e 17 anos, 23h.
“A proteção de crianças e adolescentes me parece falaciosa, na verdade. A meu ver, a preocupação principal, o foco da atenção dessa medida são as ruas, a gestão do espaço público e não a proteção de crianças e adolescentes. O que se está querendo preservar em primeiro lugar é um uso regulado do espaço público”, explica o psicólogo e membro do Núcleo de Direitos Humanos do Observatório de Favelas, Rodrigo Nascimento, que alerta: “Os números de delitos obviamente vão cair. Você proíbe a presença de adolescentes nas ruas, nos bares, boates e em determinados espaços que aliás, se não me engano, já são proibidos, e isso obviamente vai reduzir a ocorrência de crimes ou demais irregularidades que envolvam adolescentes nesses horários específicos. O que não quer dizer que esses mesmos crimes não ocorram em outros horários nesses mesmos locais ou mesmo sendo praticados em locais privados, o que torna mais difícil o flagrante, a prisão e a informação sobre a sua ocorrência”.
Para a Juíza especialista em Direito da Criança e do Adolescente pela Escola Superior do Ministério Público e atuante no Rio Grande do Sul, Lilian Paula Franzmann a “conseqüência mais grave é o fato de que em tempos onde se clama bravamente para que a família assuma suas responsabilidades em relação aos filhos (já que a escola, a sociedade e o Estado reclamam o tempo todo que a família transfere as responsabilidades sobre os seus filhos), resgatando sua autoridade e poder de impor limites aos filhos, as tais portarias emitidas por um juiz facilitam ainda mais a retirada das famílias no que tange a responsabilidade pelos seus filhos. As famílias lavam as mãos porque existe um terceiro que decide por ela e cada vez mais os pais perdem o controle sobre os seus filhos. Se as famílias hoje enfrentam dificuldades em impor limites e regras aos filhos, então o que precisa existir é apoio e orientação a tais famílias para (re) ensiná-las a cuidar dos seus filhos. Na época do Código de Menores, não se olvide, o Estado adotava a política de que famílias pobres e desestruturadas não tinham condições de cuidar os seus filhos e então a FUNABEM era o lugar adequado para os filhos da pobreza crescerem. O Estado nada fazia para melhorar essas famílias, apenas retirava os seus filhos e os colocava em internatos (locais onde se misturavam infratores, abandonados, pobres, doentes mentais…).Temo em pensar que o próximo passo depois das tais portarias seja ressuscitar a FUNABEM para os “menores desordeiros e perdidos”. A Juíza foi responsável por implantar em municípios do Estado, a Justiça Restaurativa, que tem por base a comunicação não violenta, não estereotipada e que anda de mãos dadas com as escolas da região, buscando solucionar conflitos através de ações mais próximas do cidadão e mais atenta às suas necessidades.
Recolhimento compulsório x Toque de “Acolher”
Para o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Siro Darlan, “acolher é proteger. Recolher é crime”. As aspas dão nome ao artigo publicado pelo jurista em seu blog pessoal. Citando o artigo 1º da Lei 8069/90 – o mesmo usado como justificativa para o ‘acolhimento’ de Brandão Netto – Darlan diz que neste sentido, já teve oportunidade de mencionar que a solução para problemas que envolvam crianças e adolescentes não perpassa por atitude repressiva. “Ao revés, deve ser realizada mediante a consecução de políticas públicas, cuja realização impõe a apreciação principiológica em todos os níveis e esferas de atuação pública”.
Para Darlan, “não pode o Poder Executivo, imbuído de ponto de vista repressivo, pretender realizar faxina social, mediante o recolhimento das crianças, de modo a que sejam crianças expurgados da sociedade. A solução não passa pela exclusão dos indivíduos, a consideração distorcida e dissociada da previsão constitucional”.
A visão do desembargador é endossada por Nascimento. “Creio que ela não trará resultado direto na vida desses adolescentes. Não vejo como o mero impedimento de sua presença nas ruas, sem abordar os fatores que o levam a práticas ilícitas, possa trazer alguma mudança. Na verdade, penso que é uma forma de esconder o problema, da evidência das ruas para os espaços privados, limpando as ruas, diminuindo estatísticas, gerando uma avaliação positiva da gestão municipal, mas mantendo o problema em algum canto, longe dos olhos dos eleitores”, alerta.
Já na ótica de Brandão Netto, “o objetivo da medida é reduzir a violência juvenil, diminuir o consumo de bebida alcoólica, drogas e prostituição infantil, tendo como foco mais o adolescente”. O juiz usa, dentre outras leis (ECA, Lei nº 8.069/90; art. 5° e 227° da CF/88, etc) algumas Portarias. “Em 02 anos, cerca de 750 adolescentes já foram conduzidos para o Juizado da Infância nas cidades de Santo Estevão e Ipeacetá-Ba por serem encontrados, fora dos horários estabelecidos pela Portaria, durante as rondas feitas pelos Comissários de Menores, sempre acompanhados da PM e da Guarda Municipal”, explica.
Para a Juíza da Infância e Juventude de Santa Maria (RS), Lilian Franzmann, “tais portarias limitando a permanência de crianças e adolescentes nas ruas e em locais públicos ou em bailes, boates e afins são ilegais. Remetem não à doutrina da proteção integral (que é fiel aos princípios constitucionais da legalidade, ampla defesa, contraditório, etc. e que garante tratamento às crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e não como “objetos de proteção do Estado” ou incapazes que necessitam que adultos decidam o que é melhor para o seu “bem”), mas à doutrina da situação irregular (doutrina abarcada pelo famigerado e extinto Código de Menores). São ilegais porque não coadunam com a doutrina da proteção integral, são ilegais porque ferem sim o direito de ir e vir, são ilegais porque retira a autoridade dos pais delegando-a ao “Juiz de Menores” (como era no Código de Menores onde o juiz fazia o papel de “pai de família” e decidia se o filho dos outros podia ou não sair, podia ou não namorar, podia ou não ficar na rua até que horas, podia ou não isso ou aquilo)”.
Ótima reportagem, penso que uma das vias para a solução, são políticas públicas, nenhuma alternativa isolada irá resolver a questão, interessante a ótica de que a medida do Magistrado Brandão não visa a proteção do menor, mas a do espaço público, mas acredito que como a cracolândia em São Paulo é praticamente um dilema, retirar as pessoas com o intuito de higienizar é facista, mas deixar como esta, as pessoas se exaurindo como lixo humano, perdendo a humanidade perante os demais, também não e a solução, assim como a internação compulsória dos dependentes químicos a medida de recolhimento compulsório só atingiria seus objetivos acompanhadas de mais políticas de acompanhamento.
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