sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Tráfico e Constituição


Por Talitha Ferraz do Observatório de Favelas

Um estudo encomendado à Universidade Federal do Rio de Janeiro e à Universidade de Brasília pelo Ministério da Justiça concluiu que o campo jurídico brasileiro hoje se encontra alienado frente à realidade do fenômeno do comércio de drogas ilícitas. Essa constatação e uma série de análises sobre a relação entre o atual código penal e o tráfico de drogas estão presentes no relatório Tráfico e Constituição, um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de drogas. A pesquisa, que contou com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi realizada entre março de 2008 e julho deste ano, e divulgada no final de outubro.


O texto reúne um panorama sobre o mercado de drogas ilícitas no Brasil, exames teóricos e investigações feitas em campo no Rio de Janeiro e no Distrito Federal. Os dados indicam que 67% dos casos de prisão por tráfico que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) envolvem réus primários, sem antecedentes criminais e sem vínculos com grupos criminosos. O estudo ainda coloca que a grande maioria dos detidos em flagrante por porte de entorpecentes carregava pequenas quantidades de drogas no momento da apreensão. Do total de prisões por porte de tóxico no Rio de Janeiro, 88% foram tipificadas como transações com quantidades insignificantes, enquanto que, em Brasília, 70% dos detidos por posse de maconha encontravam-se com menos de 100 gramas e 23% portavam menos de 10 gramas da substância.

As conclusões do relatório sugerem que as penas atualmente estabelecidas para traficantes são desproporcionais e não diferenciam as diversas categorias de comerciantes de drogas, além de muitas vezes contribuírem para a violação dos direitos humanos. O estudo aponta que a lei não é clara quanto à distinção entre usuários e traficantes, o que resulta em aplicações de uma lei punitiva por parte do Poder Judiciário. “A atuação da polícia, nesse sistema, é ainda comprometida pela corrupção, que filtra os casos que chegam ao conhecimento do Judiciário. Este ciclo vicioso muito tem contribuído para a superlotação das prisões com pequenos traficantes pobres, e para a absoluta impunidade dos grandes”, relata o texto do estudo.

Segundo os organizadores do relatório, que faz parte da série Pensando o Direito, projeto do Ministério da Justiça para a democratização do processo de elaboração legislativa, o intuito da pesquisa é a criação de subsídios para a atuação de legisladores e elaboradores de políticas públicas no tratamento do crime de tráfico de drogas. O objetivo é contribuir para a construção de uma política de drogas mais condizente com o cotidiano dos atores ligados ao campo do combate ao tráfico, sem perder de vista o respeito aos direitos humanos.

Penas para traficantes na análise de especialistas


Há aproximadamente duas semanas, após episódios de violência na cidade do Rio de Janeiro, alguns jornais da grande mídia, como O Globo e Estadão, vêm noticiando alguns movimentos do governo federal, da Comissão de Constituição e Justiça do Senado e do Congresso Nacional para aprovar projetos de leis que endureçam o regime de penas que incidem sobre os chefes do narcotráfico.

As publicações têm pautado também a questão das penas alternativas para “traficantes leves”, conforme estão sendo chamadas as pessoas flagradas em posse de pequenas quantidades de drogas e que não possuam vínculos com organizações criminosas. Reforçado a avaliação feita pelo estudo Tráfico e Constituição, um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de drogas, encomendado pelo Ministério da Justiça, há sugestões para mudar a lei que proíbe a concessão de penas alternativas a qualquer pessoa envolvida com a venda de tóxico.

Diante deste cenário, alguns especialistas em segurança pública e violência comentam as propostas de mais rigor com crimes de tráfico e de arrefecimento das penalidades para alguns casos específicos do mercado de drogas ilícitas. A coordenadora de Gestão Local de Segurança Pública do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, afirma que a revisão do código penal para crimes de venda de entorpecentes deve ser colocada em prática, mas avaliada com cautela, já que apenas as mudanças nas penalidades não bastariam para resolver a complexa trama que envolve política de drogas, segurança pública, legislação penal e violência. “O discurso tradicional da segurança pública geralmente recorre à aplicação da lei penal. Quando há uma questão criminal que choca a sociedade, aí se recorre ao endurecimento penal. Uma legislação mais dura e ponto final, fazer mudanças na lei isoladamente, é uma forma de lidar com o problema que acaba reduzindo as questões que realmente o configuram. Acaba sendo mais fácil ter essa postura do que discutir uma mudança de paradigma”, defende Carolina Ricardo.

Já o pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj), professor Ignácio Cano, sustenta que há lados positivos no caso das propostas de criação de penas alternativas para os pequenos traficantes. “Isso pode resultar na diminuição da corrupção da polícia nos casos de extorsões e evita também a sobrecarga do sistema penitenciário, mas em termos da redução efetiva da violência é preciso que sejam tomadas ações mais a longo prazo. Não é uma medida a curto prazo, que irá contribuir para a redução da violência”, afirma.

A professora da Universidade Cândido Mendes, Jacqueline Muniz, integrante do Grupo de Estudos Estratégicos UFRJ/COPPE/UCAM (GEE), comenta que as iniciativas à pena privativa de liberdade para pequenos delitos são fundamentais, primeiro para garantir a eficiência do sistema de justiça criminal e da gestão penitenciária, segundo para possibilitar alternativas e sanções adequadas à natureza e à gravidade de cada crime. “A prisão tem impacto sob a segurança sim, mas o impacto é além da lei por si mesma, é pela chance de prisão. A duração da pena não, mas a certeza de uma punição: é isso que dissuade as pessoas do crime numa sociedade democrática”, conclui.

Jacqueline Muniz afirma que é preciso haver leis razoáveis, validadas e pactuadas pela sociedade, leis passíveis de aplicação. Ela desvincula a relação de causalidade comumente proposta entre endurecimento penal e redução da violência. “Legislações muito draconianas, próprias de uma lógica de endurecimento ou de um populismo penal, orientadas pra uma visão conservadora, tendem a se desvalorizar porque se mostram pouco aplicáveis e conflitam com a realidade, gerando a percepção da impunidade e da ineficiência da justiça criminal e de segurança pública. É uma quimera acreditar que o enrijecimento da lei venha produzir mais segurança e menos violência. É como enxugar gelo”, reforça.

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