Marina Lemle da Comunidade Segura
A pessoa fuma, fuma e nada acontece. O crack não faz efeito, a "onda" nunca vem. Uma hora, a pessoa desiste e se desinteressa. Essa é a lógica de uma droga que pesquisadores do Programa de Desenvolvimento de Fármacos do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pretendem desenvolver.
Mas a Academia andou alheia à questão das drogas e os pesquisadores reconhecem que antes de começar as pesquisas precisam conhecer melhor o problema. Por isso, a UFRJ organizou o fórum “Crack – destruição progressiva da sociedade: a Academia pode ajudar?”, que reuniu no dia 7, na Ilha do Fundão, no Rio, um defensor público, um médico, um articulador comunitário e um dependente químico, além de pesquisadores renomados das áreas de farmacologia e neurociências, que desta vez foram ouvintes.
De acordo com o professor Roberto Takashi Sudo, coordenador do Fórum, o crack, um derivado da cocaína, é a droga que mais assusta, pela rapidez com que se alastra e dos danos que causa. “Queremos entender o problema, e por isso resolvemos começar ouvindo o que a comunidade pensa e sabe. Escolhemos os convidados para o fórum por suas ações na sociedade, como o médico que trata o dependente, tanto pelo lado psicológico quanto farmacológico, e o próprio dependente, pois não temos a menor ideia do que pode ocorrer com a pessoa”, explicou.
Segundo Takashi, a universidade poderia desenvolver uma substância para antagonizar as moléculas de forma a diminuir a sensação de recompensa causada pelo consumo da droga. Ele conta que em outros países já existem ações nesse sentido e acredita que a adesão voluntária dos dependentes ao programa é viável.
“Quando a pessoa está no fundo do poço, não se alimenta mais direito, não quer tomar banho e começa a ter doenças secundárias causadas por baixa imunidade, como pneumonia, ela percebe que precisa fazer alguma coisa”, disse. De acordo com o professor, com o tratamento o dependente deverá se desinteressar pela droga e não terá os efeitos colaterais provocados por outras drogas de substituição.
Entre a repressão e a permissividade
Em sua apresentação, o professor de psiquiatria infantil e da adolescência da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jairo Werner Júnior, explicou que o efeito do crack é muito potente e rápido, criando uma compulsividade imediata e uma dependência rápida. Quanto mais cedo a pessoa começa a usar, maior a chance de se tornar dependente. A síndrome de abstinência pode durar semanas ou meses e as crianças e adolescentes tendem a ficar violentos.
De acordo com Werner, encarcerá-los não funciona. Para ele, é preciso mudar a cultura em relação à prevenção e à educação e criar espaços para aqueles que estão vivendo nas ruas. O professor defende medidas de justiça terapêutica em substituição a penas restritivas de liberdade.
A justiça terapêutica prevê intervenção terapêutica, vigilância toxicológica, supervisão judiciária, atividades de lazer, cultura, esporte e saúde, orientação familiar e pastoral, entre outras ações. “Eles não suportam ficar confinados. É preciso seduzi-los em formas protegidas mas que respeitem a transição”, afirmou Werner, que é psiquiatra forense da Coordenadoria de Justiça Terapêutica e perito do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro.
Ele desenvolve na UFF um projeto chamado Academias da Vida, que prevê a construção de locais com tendas oferecendo atividades diversas, como cursos, e espaços de circulação. “A transdisciplinaridade é muito importante”, destacou.
Para Werner, a população de baixa renda está abandonada em termos preventivos e terapêuticos e as práticas terapêuticas e legais que existem são impostas de forma autoritária. Segundo ele, não há protocolos sobre exames toxicológicos no Brasil. Por outro lado, a banalização e a falta de comprometimento também são um problema. “Entre dois pólos equivocados – o autoritário e o permissivo – é importante tentar uma terceira via, de meio termo”, disse.
Segundo o psiquiatra, não há tratamentos para crack com eficácia garantida, mas há muitas experiências, como as drogas que atuam sobre os receptores cerebrais, reduzindo a “fissura”. Mas ele acredita que, mais do que qualquer outra ação, a regulação do mercado de drogas pode diminuir o consumo de crack. “No Sul, o próprio mercado está abolindo o crack porque destrói o consumidor muito rápido. No Rio, os traficantes o evitaram por um tempo”, observou.
Sistema penal seletivo
O defensor público Leonardo Rosa concentrou suas críticas na nova lei de drogas, de 2006, que descriminaliza o usuário e aumenta a pena mínima do traficante. Como a lei não tem critérios objetivos para diferenciá-los, cabe ao juiz levar em consideração a natureza e a quantidade da droga portada, o local e as condições do fato, além da conduta social e os antecedentes da pessoa.
“A Lei ampliou o fosso entre o usuário e traficante. O estereótipo criminal determina quem é o traficante. Os jovens negros e pobres são encarcerados, enquanto os consumidores de classe média e alta são tratados como usuários ou dependentes químicos – e portanto inimputáveis. A Justiça é elitista, classista e seletiva em relação às infrações penais”, resume.
A lei 11.343 prevê três penas alternativas a usuários: advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa. As duas últimas penas se estendem pelo prazo máximo de cinco meses. Já a pena mínima para o tráfico, que era de três anos, aumentou para cinco. “Um usuário flagrado não pode ser preso, e ele só pode ser conduzido à delegacia para mero registro do fato. Não há assunção de qualquer compromisso com a Justiça”, disse Rosa.
'Usar droga aos oito anos não é uma opção'
O mediador de conflitos e articulador de política comunitárias Carlos Costa, da ONG Viva Rio, afirmou que as ações terapêuticas e de coibição do uso de drogas ficam muito nas cercanias das favelas, não chegando aos becos e vielas, onde o problema se concentra. "O crack é uma droga da periferia. Há crianças de oito anos usando. Isso não acontece com a classe média. É importante abordar o tema com a amplitude geográfica que ele tem. Na favela, a droga não é opção, é falta de opção", enfatizou.
Costa, que é integrante da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, frisou que além de as autoridades só entrarem para reprimir, sem desenvolver uma política de atenção e encaminhamento, a própria comunidade tem preconceito e expurga o assunto. "As pessoas não entendem o conceito de redução de danos. Elas acham que tem que endurecer mesmo, reprimir mais. Como pode alguém que vem dar assistência levar uma seringa embora e deixar outra nova no lugar?", contou.
Segundo Costa, as comunidades das favelas estão acostumadas a ver usuários se transformarem em dependentes, começarem a praticar crimes e traçarem um caminho para a própria morte. Para ele, o conservadorismo nasce embasado nas perdas que as pessoas vêm tendo por causa das drogas.
"A droga é o caminho para a morte. Não é questão de mudar de olhar, mas de mudar a realidade mesmo. Faltam terapias, tratamentos e espaços para isso. O preconceito da comunidade contra as drogas é resultado da falta de políticas públicas", concluiu, acrescentando que projetos como o de Jairo Werner na UFF são fundamentais, mas raros.
'O seu muro quem faz é você'
“Se ele é muito doido e parou, eu também vou conseguir”. Essa é a ideia que Carlos Rosa gosta de inspirar nos jovens que tenta ajudar a livrar da dependência no Projeto Livres, que utiliza um sistema similar ao dos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos. Ele contou que busca mostrar para a pessoa que existe um outro mundo fora das drogas e que quando ela se motiva a parar, deve estabelecer metas e mudar hábitos. “É um trabalho artesanal. Aponto o caminho da saída por onde saí. Mas o seu muro quem faz é você mesmo”, disse.
Na segunda etapa do fórum, programada para abril, os cientistas deverão ouvir um político e um representante da organização Médicos Sem Fronteiras, entre outros convidados. Nesta etapa, a universidade também exporá suas primeiras ações e ouvirá o que esperam dela.
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