quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

É preciso acabar com excesso de formalismo do BO


Por André Luis Melo - do Conjur

Muito se discute sobre Inquérito Policial (IP) e sobre O Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), mas praticamente nada sobre o Boletim de Ocorrência (BO). Na Legislação há pequenas referência ao mesmo na Lei 8069-90 (ECA, Boletim de Ocorrência Circunstanciada) e na Lei 5970-73 (Acidente de Trânsito). No entanto, o CPP não trata do mesmo. Este documento tão comum e rotineiro atualmente tem passado esquecido pelo legislador e pelo meio jurídico, o mesmo acontecendo em relação à prática de lavratura de Autos de Prisão em Flagrante (APFs).

Em geral, existe a prática de o BO ser lavrado pela PM (em muitos estados) e em alguns outros a Polícia Civil também costuma registrar este documento, o qual é chamado de Registro de Ocorrência. Em diversos estados existe o problema de que a PM se recusa a fazer BOs quando o crime já aconteceu, pois alega que faz apenas policiamento preventivo e ostensivo. E a Polícia Civil também se recusa a fazer o BO. Então, o cidadão fica sem saber quem lavrará o BO. Algumas pessoas com maior conhecimento, e dependendo do fato, procuraram o Promotor (Ministério Público) e este requisita ao órgão policial a lavratura do BO, uma triangulação que mostra o mau funcionamento do sistema.

Em muitos casos é tão difícil registrar um BO que a vítima prefere nem gastar tempo, o que contribui para aumentar a “cifra negra” (crimes não registrados). Muitos fatos são comunicados pelo 190 e nem sempre também são registrados como BO. Sem dúvida, é difícil saber o que deve ser registrado ou não. Em MG existe o BOS (Boletim de Ocorrência de Serviços), o qual é usado pela PM quando o fato não é considerado como infração penal.

Na prática penal atual, a Polícia Militar lavra um Boletim de Ocorrência e encaminha para a Polícia Civil que, em tese, instaura um TCO ou um IP conforme for o tipo penal. No entanto não existe nenhuma lei determinando expressamente que o Boletim de Ocorrência deva ser encaminhado à Polícia Civil. No entanto, são poucos os Inquéritos Policiais iniciados sem Boletim de Ocorrência oriundo da PM.

Este sistema é muito complexo principalmente quando envolve também a Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal, pois não um mecanismo formal de integração com a PM. Não raro Boletins lavrados pela PM em uma cidade são remetidos para outra em razão de questões de competência.

Nem mesmo nos casos de prisão o artigo 304 do CPP, de 1941, estabelece que o preso deva ser apresentado ao Delegado de Polícia, pois apenas fala em autoridade competente e não em autoridade policial. Nesse sentido transcreve-se redação: “Artigo 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. (Redação dada pela Lei 11.113, de 2005)” (grifos nosso)

Contudo, é fato que no artigo 322 do CPP preceitua que a Autoridade Policial poderá apresentar fiança em delitos com pena de detenção. Logo, em alguns casos faz-se mais rápido apresentar o preso ao delegado.

Porém, conforme artigo 321 do CPP nada impede que o promotor, como titular da ação penal, ou o juiz coloquem o preso em liberdade quando verificar que não é o caso de infração penal ou de pena de prisão. Esta situação acontece muito pouco na prática, pois a PM acostumou a apresentar o preso ao delegado e não ao promotor. Também não apresentam o preso ao juiz, apesar de os Tratados Internacionais assegurarem este direito. O texto legal citado preceitua o seguinte:

Artigo 321. Ressalvado o disposto no artigo 323, III e IV, o réu livrar-se-á solto, independentemente de fiança:

I - no caso de infração, a que não for, isolada, cumulativa ou alternativamente, cominada pena privativa de liberdade;

II - quando o máximo da pena privativa de liberdade, isolada, cumulativa ou alternativamente cominada, não exceder a três meses

Observa-se que no artigo acima não existe definição de quem pode colocar o réu em liberdade.

É fato que a estrutura do Ministério Público teria que ser repensada para receber os presos. Porém, existe um sistema que tem funcionado bem que é o da Área da Infância e Adolescência em que o adolescente é encaminhado ao Ministério Público pela autoridade policial (artigos 174 e 175 da lei 8069/90) e isto tem evitado que muitas crianças e adolescentes permaneçam apreendidos por atos infracionais. O termo “Autoridade Policial” é indefinido na legislação, sendo que os Delegados alegam que este termo refere-se exclusivamente aos mesmos.

Uma medida também importante que a Lei 8069/90 (ECA) permite é a dispensa do APF quando for o caso de liberação do adolescente, permitindo apenas um Boletim Circunstanciado, mas o CPP exige APF mesmo que seja o caso de fiança ou suspensão do processo (artigo 89 da Lei 9099/95), ou seja, gasta-se um tempo enorme ouvindo testemunhas (não raro apenas de apresentação e que nem viram o fato) e nada disso será usado no processo judicial.

Tudo seria bem mais fácil se existisse um diálogo permanente entre Polícia Civil e Ministério Público, mas isso nem sempre existe. Porém, nos locais em que há esta abertura de diálogo o serviço flui muito melhor.

Por outro lado, o CPP quando fala em “boletim” apenas o faz no art. 809 e para referir-se à questão da estatística e prevê que uma via será arquivada no cartório policial, mas nem se sabe se este dispositivo está em vigor, pois os Estados não usam mais os modelos constantes dos anexos, os quais têm como título “distrito policial” e em 1941 a divisão de atribuições policiais era bem diferente da atual. Por oportuno transcreve-se o texto legal:

Artigo 809.

“3º O boletim individual a que se refere este artigo é dividido em três partes destacáveis, conforme modelo anexo a este Código, e será adotado nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios. A primeira parte ficará arquivada no cartório policial; a segunda será remetida ao Instituto de Identificação e Estatística, ou repartição congênere; e a terceira acompanhará o processo, e, depois de passar em julgado a sentença definitiva, lançados os dados finais, será enviada ao referido Instituto ou repartição congênere”.

Esta lacuna é de suma importância que venha a ser preenchida, pois fragiliza o controle do sistema penal. Afinal, o Delegado de Policia não pode arquivar Inquéritos Policiais, mas todos sabemos na prática que pode deixar de Instaurar Inquéritos Policiais ou TCOs, pois não há controle. Isto pode se dar por vários motivos como atipicidade, mas não existe controle e nem publicidade efetiva, pois há casos em que apenas são arquivados sem despacho, além disso a decisão não é publicada.

Em tese, nada impede que o Ministério Público faça Termos de Cooperação Técnica com a Policia Militar e passe a receber cópias dos Boletins de Ocorrências Policiais e a partir disso requisite TCOs e IPs, logo fazendo a triagem. Isto seria possível principalmente se fosse efetivada a informatização. Ou seja, o MP deixaria de ser inerte na área penal e passaria a estabelecer as prioridades de investigação e sem necessidade de alteração legislativa.

No entanto, há muitas fragilidades neste sistema, pois apenas se lavra BOs do que o policial quer e demora muito. Tem se observado PMs preocupados com Tipicidade Penal em Boletins de Ocorrência, mas o BO deve ser apenas uma narrativa de fato e não de tipo penal. Também há casos de PMs exigindo prova para se lavrar BOs, mas isto não é necessário, afinal se a pessoa mentir cometerá crime. Exemplificando, em determinado caso um PM gastou 90 minutos para lavrar um BO sobre falso seqüestro relâmpago e sempre ligando para o Tenente para saber o tipo penal, e depois nada foi investigado, mesmo tendo o número telefônico (ou seja, temos polícias cartoriais), ora bastaria escrever que “fulano foi vítima de um telefonema informando falso seqüestro de sua filha no telefone X (o resto seria investigado posteriormente)”. Em outro caso uma PM alegava que para preencher um BO sobre falsificação do cheque precisava dos originais e não cópias (ora, isto é matéria para o processo penal e não para a PM, logo bastaria apresentar as cópias naquele momento).

A rigor, a diferença quantitativa entre BOs lavrados e IP/TCOs instaurados é enorme, isto é explicável em muitos casos como atipicidade, mas não o é em muitos. Outrossim, há locais em que se não existe autoria conhecida, o IP não é instaurado, o que é uma prática sem respaldo legal.

Diante desta falta de comunicação formal com o Ministério Público instaura-se IPs por casos atípicos e deixa de se instaurar para casos típicos, isto é, caos. Fato muito comum é o do art. 306 do CTB (direção de veículo sob efeitos de embriaguez). Há Delegados que não instauram o IP, logo não estão remetendo o caso ao Fórum/MP alegando atipicidade. Ora, a tipicidade neste caso ainda não está pacificada, portanto deveria instaurar o IP. Mas, a quem compete decidir isso?

Em tese, o Ministério Público como titular da ação penal deveria ser o primeiro a se manifestar nestes casos, pois se o fato é atípico nem poderia o cidadão ficar preso. No entanto, o nosso CPP de 1941 ainda não está de acordo com a Constituição Federal de 1988, pois a tão festejada reforma de 2008 praticamente nada inovou, exceto complicar ainda mais ao se criar mais uma fase “preliminar” fortalecendo o conceito de “processos penais quase que eternos”, pois isto fomenta o mercado de alguns e atende aos interesses exclusivos da defesa. Ou seja, temos BO, TCO-IP, Defesa Preliminar, Defesa e ainda Revisão Criminal, Habeas Corpus, e agora estão inventando uma tal de “justificação”. Ou seja, o processo penal não acaba nunca, pois os fatos são vistos e revistos eternamente em busca de uma prescrição.

Iniciativa brilhante é a do BO Eletrônico em São Paulo e que em dez anos já permitiu quase três milhões de Ocorrências Policiais registradas pela internet. Um policial chega a gastar quase 40 minutos para lavrar uma ocorrência e a pessoa perde horas em órgãos policiais para ser atendida. Logo, O BO Eletrônico reduz custo e tempo tanto da polícia, como dos cidadãos. A rigor, existe muita resistência à informatização, pois significa perda de poder pessoal para alguns.

Atualmente discute-se se PM pode lavrar ou não TCOs. No entanto, esta discussão é meramente acadêmica. Afinal, se o Ministério Público quiser, basta elaborar Termo de Cooperação Técnica com a PM para que remeta cópia dos Boletins de Ocorrência ao Ministério Público e este após analisar os mesmo requisitaria a lavratura de IP ou TCO, ou até mesmo promoveria o arquivamento ( e neste último caso é preciso resolver se haveria necessidade, ou não, de homologação judicial), ou denunciaria (iniciaria a ação penal), ou ofereceria proposta de transação penal e solicitaria audiência no Juizado.

No caso do TCO não há apuração de infração penal, pois o seu objetivo é justamente evitar a apuração, exceto em caso de novas diligências complementares. Ademais, ainda que se considere nulo o TCO elaborado pela PM, pouco efeito prático terá, pois a prova de qualquer forma provavelmente teria que ser reproduzida novamente em juízo. E para a transação penal, nem há necessidade do TCO, embora seja comum a existência do mesmo.

Dessa forma, como estamos discutindo um novo CPP, faz-se importante debater a questão dos Boletins de Ocorrência Policial, inclusive criando um cadastro integrado, informatizado e numérico dos mesmos, bem como dos Inquéritos Policiais e TCOs, pois isto permitiria um maior controle, assim como já existe para os processos judiciais.

Em suma, quem solicita a lavratura de um BO na polícia (militar ou civil) deve ter o direito de receber um número e acompanhar andamento do documento pela internet. Sendo certo que a apresentação do preso imediatamente ao Promotor pela PM e juntamente com o BO poderia desde já reduzir a quantidade de prisões provisórias, caso se aplicasse o artigo 321 do CPP, pois poderia colocar o mesmo imediatamente em liberdade se entender como fato atípico ou que para o caso cabe pena alternativa (art. 44 do CP). Mas, é necessário também repensar o modelo de Boletins de Ocorrência, Lavratura de APFs e colocação em liberdade na estrutura do projeto de Novo CPP para que o mesmo seja simplificado e menos burocratizado, pois a Lavratura do APF também tem consumido um tempo enorme e desnecessário em razão do excesso de formalismo.

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