sábado, 21 de agosto de 2010

Mulheres criam facções nas prisões do RS


Aumento no número de presas abre caminho para grupos femininos que, das celas, controlam o crime além dos muros do cadeias

Francisco Amorim - do Zero Hora

O avanço das mulheres nas cadeias gerou um fenômeno antes exclusivo às prisões masculinas. Com um aumento proporcional cinco vezes maior do que dos homens nos últimos quatro anos, a população carcerária feminina passou a conviver com pequenas facções que alugam celulares, traficam drogas atrás das grades e até comandam execuções de desafetos, com reflexos na ruas.

As quadrilhas nascem na esteira da superlotação – as prisões gaúchas abrigam 2 mil presas, o dobro da capacidade. De acordo com a promotora Sandra Goldman, os grupos se aproveitam da deficiência das cadeias, como a falta de colchões e materiais de higiene pessoal, para ampliar as adesões. O assédio já começa com as novatas. Sem o apoio da família, as presas passam a depender dos bandos, que suprem as necessidades delas desde pasta de dente ou sabão para lavar roupa. Em troca, cobram lealdade, o que significa a prática de crimes mesmo depois da liberdade.

De acordo com o juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais da Capital, o palco das disputas entre duas quadrilhas são a Penitenciária Madre Pelletier – cadeia projetada para receber 250 detentas mas que abriga quase 600 –, na Capital, e duas alas femininas na Penitenciária Modulada de Montenegro – onde estão outras 220 detentas.

A força dos dois grupos ainda é tímida se comparada às facções masculinas, porque não chegaram a todas as galerias femininas. Mas nem por isso deixam de preocupar autoridades. Diferentemente do facções masculinas, que contam com o dinheiro e o prestígio além dos muros dos cárceres para manter o controle atrás das grades, o poder das quadrilhas de batom nasce dentro da cadeia. Essa particularidade se torna mais inquietante, pois cria grupos que não existiam antes.

– Elas se organizam dentro da cadeia e isso acaba tendo reflexo no crime na rua. E quanto mais presas ingressam no sistema, mais esse grupos se fortalecem – avalia Brzuska.

Filhas herdam comando da mãe

Liderado por uma presa de 46 anos condenada por homicídio, um dos bandos comandava a galeria D do Madre Pelletier até o ano passado, mas passou por um abalo. Uma investigação do Ministério Público desvendou um suposto esquema de vendas de drogas, que contaria até com a participação de agentes penitenciários – inclusive integrantes da cúpula da casa, afastados após as suspeitas. Só que nem a transferência da líder para Montenegro desfez o grupo, que tem uma linha de comando familiar.

– Ela tem as filhas como testas de ferro – comenta o juiz.

O grupo rival seria liderado por uma detenta do Madre Pelletier de 46 anos. Natural de Florianópolis e com antecedentes policiais por estelionato, formação de quadrilha e tráfico, a presa ganhou poder ao ameaçar outras detentas dentro da penitenciária feminina.

As autoridades mantêm a cautela na divulgação dos nomes das líderes, porque temem que a identificação sirva de propaganda às detentas – e acabe por reforçar o poder delas.

Execuções forjam o domínio

Para ganhar força dentro das cadeias femininas, as quadrilhas formadas por mulheres copiaram as práticas adotadas pelas principais facções dos presídios masculinos: corrupção de agentes penitenciários, tráfico de drogas dentro das celas e assassinatos de desafetos.

Investigações do Ministério Público indicam que os dois bandos cresceram rapidamente nos últimos três anos ao cooptar servidores que facilitaram o acesso a celulares e entorpecentes. Promotores suspeitam, por exemplo, que uma das organizações teria recrutado até integrantes da ex-cúpula da Penitenciária Madre Pelletier, entre 2007 e 2009. O caso virou processo com 12 réus que tramita na 8ª Vara Criminal.

Quem resiste à submissão sofre ameaças e corre risco de ser assassinado, confirma o juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais da Capital. Entre os crimes que o magistrado acredita ter relação com a disputa das facções femininas está a morte de Ana Paula Machado Parodes, 29 anos. Condenada por roubo, a detenta foi assassinada no banheiro do pátio da Modulada de Montenegro em 13 de julho, apenas dois meses após ser transferida do Madre Pelletier para lá.

O problema já bateu à porta da Susepe. Ao reconhecer a formação das facções, o órgão traça a estratégia para barrar os grupos.

– Nossa área de inteligência tem trabalhado para identificar lideranças que estejam surgindo – descreve o superintendente-adjunto, Afonso Auler.

Como frear os grupos

Os prognósticos de especialistas e autoridades são pouco animadores. Segundo eles, o poder de bandos femininos tende a se espalhar pelo Estado se nada for feito, a exemplo do que ocorreu com as facções masculinas, que disseminaram sua força na maior parte das penitenciárias e, dentro delas, controlam os crimes nas ruas.

Até agora, a Susepe contou com um paradoxal aliado contra os bandos femininos. No Interior, as quadrilhas de mulheres dentro dos presídios ainda têm força pequena por serem raras as cadeias femininas de regime fechado. Assim, o Estado aloja as detentas em galerias de prisões masculinas em grupos menores – um obstáculo para a formação de facções.

Os especialistas alertam que, por isso, não basta o governo gaúcho investir só na construção de novas cadeias: além das 50 vagas no presídio feminino em Torres, inaugurado na segunda-feira, a Susepe prevê a inauguração até dezembro da penitenciária feminina de Guaíba, com 400 lugares. É necessário, simultaneamente, ampliar e qualificar o quadro de servidores para dar conta do novo contingente de detentas e da coibição dos bandos.

– Independentemente da criação de vagas, é importante dar condições de trabalho aos agentes penitenciários, isto é, mais equipamentos, mais investimentos na sua qualificação e, principalmente, na sua valorização – defendeu a promotora Sandra Goldman.

Professor de Direito Penal, Rafael Canterji vai além. Segundo ele, o aumento da população carcerária feminina é reflexo de uma política criminal repressiva em comunidades pobres. A posição é respaldada pelos números: 20,3% das detentas não completaram o Ensino Fundamental e 41,6% foram condenadas a mais de 30 anos de prisão.

– Tradicionalmente, reagimos ao crescimento da criminalidade com aumento de crimes e penas, o que se mostra ineficaz – afirma.

A superlotação em alas femininas tem outro lado perverso: a falta de espaço para recém-nascidos e suas mães. Hoje, 21 crianças e quatro gestantes estão em uma ala improvisada de atendimento materno-infantil dentro da Penitenciária Madre Pelletier. Em setembro passado, eram 32 crianças e 20 grávidas. A falta de um local apropriado para visitas amplia o sofrimento das apenadas que tem filhos do lado de fora.

– Aos poucos, elas acabam abandonadas pela família – comenta a juíza Adriana Ribeiro da Silva, da Vara de Execuções Criminais.

Uma chance a mais para serem recrutadas pelas facções que tentam tomar o controle dentro das celas.

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