quinta-feira, 16 de junho de 2011

Guerra às drogas: Uso de entorpecentes em debate


Por Cecília Oliveira


“A guerra global às drogas fracassou, com conseqüências devastadoras para indivíduos e sociedade ao redor
do mundo”. Assim começa o Relatório da Comissão Global de Política de Drogas, apresentado semana passada à ONU. A conclusão é tirada 50 anos depois do início do vigor da Convenção sobre Entorpecentes e 40 depois que o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, lançou a “guerra contra as drogas”.

A comissão, composta por líderes com grande representatividade política no mundo, pediu à ONU a reavaliação do mo
delo de enfrentamento e a adoção urgente de um novo, mais eficiente e humano. A justificativa para este parecer é de que os vultosos recursos destinados à a medidas repressivas direcionadas a produtores, traficantes e consumidores de drogas ilegais, não cumprem seu objetivo de reduzir eficazmente a oferta, tampouco o consumo. Dentre várias recomendações, o relatório sugere a legalização e regulamentação do uso da maconha, o fim da criminalização dos usuários de todas as drogas, o investimento de recursos em pesquisa científica e o uso da repressão de maneira crítica, com ênfase nas estruturas criminosas e não nos cultivadores, “mulas humanas” e vendedores de pequenas quantidades de droga.

Debate


Para o advogado e ex-Secretário Nacional de Justiça, Pedro Abramovay, a legalização das drogas muito dificilment
e pode ser tratada a partir de um só país. “Há uma série de convenções internacionais que impedem os países de legalizar unilateralmente. Entretanto, vários países já conseguiram flexibilizar suas legislações sem que isso desrespeitasse as convenções. É o caso de Portugal, da Espanha, da Holanda e até dos EUA, no que diz respeito ao uso medicinal. Assim, acho que devemos conseguir produzir um debate mais sério no plano internacional, que possa avaliar os custos e benefícios das atuais políticas. Em minha opinião se verá claramente que os custos superam os benefícios e aí outras possibilidades têm que ser pensadas”.

Francischini: não é que 'guerra' tenha falhado, mas é que o modelo proibicionista sozinho não funciona.

Já o titular da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e suplente da Comissão de Política Públicas de combate às drogas da Câmara, Deputado Delegado Francischini, tem uma posição mais severa. “Sou contra a legalização das drogas. Por exemplo, o álcool e a maconha são considerados drogas leves, mas muitas vezes, acabam como porta de entrada para outras mais pesadas, como a cocaína e seus derivados (crack e oxi), sendo uma influência e o subsídio para o tráfico de drogas. O que aumenta a violência e o número de dependentes químicos, acarretando diversos danos à convivência em sociedade”, explica.

O Ex-presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais e membro de investigação nomeado da CPI do Narcotráfico, Francisco Garisto, também é contra a legalização das drogas, mas defende a descriminalização para o uso. “A maioria dos viciados são doentes e não criminosos. Para a implantação disso, teríamos que ter um sistema de recuperação adequado. Na Holanda essa medida trouxe o desespero para os governantes”, pondera.


Para Jailson de Souza, geógrafo e coordenador do Observatório de Favelas – que é a favor da
descriminalização das drogas, mas contra a legalização – o ‘Estado não pode legalizar algo que, cientificamente comprovado, causa dependência e pode ser prejudicial a saúde. Ele defende que, em primeiro lugar, o foco da política de segurança deve ser mudado, buscando sempre a preservação da vida como valor maior. “Deve-se realizar um implacável combate ao tráfico de armas e ao seu porte. Isto resulta na aplicação de penas severas aos que a traficam e na intensificação das apreensões; a mudança da legislação que trata das drogas ilícitas; uma polícia bem treinada, exigida e bem paga, sob controle social e com efetiva punição à corrupção e ao abuso de autoridade; uma legislação penal que trate da mesma forma os desiguais social e economicamente; o aumento do investimento na prevenção do uso das drogas e no tratamento dos usuários dependentes, tratando-os como doentes e não como criminosos; o aumento do investimento social e da segurança nos espaços favelados; a punição das diversas formas de discriminação ao morador da favela, em particular o jovem e/ou o negro”.

O geógrafo faz ainda uma observação incisiva ao afirmar que “essas iniciativas, no entanto, ameaçam práticas sociais comuns no Rio de Janeiro: o racismo velado, mas arraigado; o tradicional suborno ao policial e ao fiscal desonestos; o tratamento privilegiado para os atos infracionais dos setores médios e dominantes; a superação de velhos preconceitos e conceitos em relação às drogas e aos usuários e, especialmente, que o reconhecimento da existência de uma só cidade e um só cidadão. Todas as ações apontadas implicam investimentos vigorosos e/ou mudanças de cultura por parte da população do asfalto e das instituições, privadas e públicas”.

Lei de drogas


“A atual lei de drogas não resolve o problema. Pune sem orientar. Sem prevenção o uso de drogas não tem solução e essa lei fala muito pouco em prevenção ou quase nada. Se somente a repressão fosse correto esse problema teria acabado nos Estados Unidos e não aumentado”, diz Garisto. O congressista Francischini diz que a lei drogas não trata o tema com a devida relevância. “Pretendo garantir meios, através de políticas públicas, para prevenir, tratar e reinserir socialmente os dependentes químicos, e evitar a incitação ao uso”.

Para Abramovay, o resultado da aplicação da lei foi negativo, “Ela causou uma explosão no número de presos relacionados a drogas, não diminuiu o consumo de drogas no Brasil, não melhorou a qualid
ade do atendimento médico aos usuários, não diminuiu a violência ligada ao tráfico de drogas, enfim, não trouxe nenhum benefício concreto para a população depois de quase cinco anos de vigência”.

As Nações Unidas estimam que entre 1998 e 2008 o consumo mundial de cocaína aumentou 27% e o da maconha, 8,5%. O uso de opiáceos (como a morfina, metadona e derivados do ópio) foi o que mais cresceu: 34,5%. De acordo com Relatório do UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime) lançado em 2010, atualme
nte Brasil e Argentina constituem os maiores mercados de cocaína na América do Sul, em termos absolutos (mais de 900 mil e 600 mil usuários, respectivamente). Na região, as maiores prevalências de uso de opiáceos foram relatadas pelo Brasil e pelo Chile (0,5% da população entre 15 e 64 anos, correspondendo a 640.000 e a 57.000 pessoas, respectivamente). Em ambos os casos, os opiáceos prescritos (medicamentos a base de morfina) constituem o principal problema, enquanto o abuso de heroína continua a ser extremamente baixo.

Traficante x Usuário

Atualmente, há uma “brecha” na lei de drogas que permite a autoridade classificar o portador de entorpecentes como usuário ou traficante de modo, que não define, por exemplo, qual quantidade
configuraria uma coisa ou outra. Para Garisto, esta imprecisão pode permitir danos a classes menos favorecidas e contribuir com a criminalização da pobreza. “Alguns delgados fazem dessa prerrogativa um grande balcão de negociação política e até monetária. Esse poder de prender ou não um viciado deveria ser de uma autoridade médica psicológica e não de um delegado de polícia. Algumas autoridades policiais não sabem como proceder na distinção entre usuário e traficante e por desmazelo acabam enquadrando todos no tráfico sem pensar que estarão destruindo uma vida”.

A lei, em tese, retirou a pena de prisão do usuário e aumentou as penas contra o traficante e para Abramovay, isso tem efeitos
perversos. “Esta fronteira é muito pouco clara. Alguém que distribui para os amigos é usuário ou traficante? Alguém que vende um pouco para sustentar o próprio vício, deve ser tratado como usuário ou como traficante? Muitas dessas pessoas, que estavam nessa fronteira entre o uso e o tráfico recebiam, antes da lei, penas alternativas. Hoje elas estão sendo enviadas para a prisão. O outro efeito perverso é que neste momento de definir quem é usuário e quem é traficante, é muito comum que os preconceitos façam com que o judiciário defina que, em situações muito semelhantes, pessoas de zonas excluídas das cidades sejam tratadas como traficantes e pessoas de classes mais favorecidas recebam tratamento de usuários”.

Guerra Perdida


“Parece evidente que a aposta de que seria possível reduzir o consumo por meio de uma guerra às drogas lutada dentro e fora dos países deu completamente errado. Efeito perverso: é muito comum que os preconceitos façam com que o judiciário defina que, em situações muito semelhantes, pessoas de zonas excluídas das cidades sejam tratadas como traficantes e pessoas de classes mais favorecidas recebam tratamento de usuários Efeito perverso: é muito comum que os preconceitos façam com que o judiciário defina que, em situações muito semelhantes, pessoas de zonas excluídas das cidades sejam tratadas como traficantes e pessoas de classes mais favorecidas recebam tratamento de usuários Os danos são gigantescos, as vidas perdidas, o número de pessoas presas, o custo envolvido e tudo isso para que não se consiga diminuir o consumo de drogas. Realmente é necessário mudar o modelo. Não se pode achar que as drogas não causem mal à saúde, mas os danos à saúde não são evitados pela repressão e sim pela discussão séria com toda a sociedade sobre como lidar com o problema. Quando se descriminalizou o uso de drogas em Portugal, por exemplo, o principal efeito foi a diminuição de mortes relacionadas às drogas. Isso porque foi possível equipar o sistema de saúde para lidar com o tema”, explica Abramovay.

“Não acredito na capacidade estatal em gerenciar uma liberação geral do consumo das drogas. Tenho dúvidas se o brasileiro terá educação e cultura para uma liberalização total. Acredito que a prevenção deveria ser o maior objetivo estatal e não a repressão que realmente falhou, mas a liberdade geral ainda é cedo para um país que tem um sistema de segurança pública e de justiça altamente corrupto e ineficiente” diz o ex-policial federal, Garisto.

Para Francischini, não é que “guerra” tenha falhado, mas é que o modelo proibicionista sozinho não funciona. “É necessária a integração entre três situações: prevenir, combater e tratar, se uma delas não for acompanhada com relevância e a atenção devida, a “guerra” pode vir a falhar”.


“Muitas drogas podem fazer muito mal à saúde. Mas a questão é hoje somos afetados pelos danos causados pelas drogas e pelos danos causados pela guerra às drogas. E tem um agravante, pelo fato de estarmos lidando com o tabu disso ser criminalizado, os sistemas de saúde e de assistência social têm uma enorme dificuldade de lidar com o tema. Assim, no Brasil, por exemplo, 70% dos atendimentos a usuários é feito fora do SUS. Se não fosse crime certamente se criariam condições para lidar com o problema muito mais eficientes. E a violência causada pela guerra às drogas, as famílias destruídas pela prisão, as mulheres lotando os presídios e deixando crianças abandonadas. Tudo isso tem um custo tão alto que não é possível que não se perceba que temos que mudar a política”, alerta Abramovay.

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