Por Cecília Olliveira
Segundo dados da Unicef, “no Mundo faltam cerca de 60 milhões de mulheres que foram abortadas por serem seres femininos, assassinadas quando bebês pelo mesmo motivo ou morreram vítimas de maus-tratos. Em 79 países a violência contra as mulheres não é punida. No contexto Europeu, apenas 5% dos casos chegam à polícia, mas estima-se que uma em cada cinco mulheres seja agredida pelo parceiro masculino. Aliás, 25% de todos os crimes violentos registrados na União Européia foram cometidos por um homem contra a sua mulher ou companheira. Os dados se tornam ainda mais catastróficos quando o Conselho da Europa, na Recomendação n° 1582/2002, indica que a violência contra as mulheres no espaço doméstico é a maior causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos, ultrapassando o cancro, acidentes de aviação e até a guerra” (CORREIA, Patrícia. Violência Doméstica – Uma realidade que não pode ser ignorada).
O trecho citado abre o texto da Ação Direta de Constitucionalidade 19, ajuizada pela Presidência da República, em novembro de 2007, com objetivo de propiciar uma interpretação judicial uniforme do disposto na Lei Maria da Penha (11.340/06) e mostra que grande parte do mal que assola as mulheres mundo afora é fruto do machismo. No último dia 9 de fevereiro, o Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou tal ação e três pontos são marcantes na decisão proferida.
O primeiro – de relevância inquestionável para o enfrentamento à violência de gênero – é a decisão acerca da constitucionalidade da Lei. “Essa é uma manifestação significativa e que merece celebração: com a declaração de constitucionalidade, o Tribunal põe fim à discussão, equivocadamente levantada por alguns poucos, de que a lei traria uma violação à igualdade, por conferir proteção diferenciada a mulher vítima de violência doméstica”, enfatiza a advogada e professora de Direito Penal e Processual, Camilla Magalhães. Vale ressaltar que garantir a igualdade não significa considerar todos iguais, subtraindo as diferenças. Assim, os juristas levaram em consideração que o contrário da igualdade não é a diferença, mas a discriminação. A Lei Maria da
Penha, ao reconhecer a diferença de poder e de tratamento recebidos pela mulher nas relações domésticas, restabeleceu a igualdade.
Brasil avança ao reconhecer constitucionalidade da Lei Maria da Penha: Em 79 países, a violência contra as mulheres não é punida. Foto:Stock
Para a delegada Renata Oliveira, que lida na ponta com os desdobramentos da Lei, o estabelecimento da constitucionalidade tem impacto direto na garantia de direitos e empoderamento da mulher. “Quando dizemos minoria, não dizemos em termos numéricos, mas em termos de representatividade e poder de decisão – ainda são as mulheres, assim como os negros e outras minorias, sub-representadas nas esferas de poder, sejam elas do poder público ou da iniciativa privada, que detém grande influência sobre os rumos das políticas públicas”.
Outra decisão do STF, que ao contrário do louvor à constitucionalidade, causou questionamentos, diz respeito à inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) aos casos de crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher. “Vejo sempre a opção penal, a opção pelo punitivismo, com cautela, por uma razão simples: a criminologia crítica nos mostrou, ao longo dos últimos anos, que o direito penal não cumpre sua promessa de evitar ou prevenir a violência (quando não é o próprio responsável por ela, inclusive pela violência de gênero). Assim, a inaplicabilidade da lei dos juizados - lei que busca uma justiça consensual e tem medidas despenalizadoras aos casos de violência doméstica, é uma clara opção pela pena como solução e, como dito, essa promessa não se cumpre (ou ao menos não se cumpriu até hoje)”, explica Camilla.
O ponto mais polêmico fica por conta do que o Supremo estabeleceu acerca da ação penal pública incondicionada, ou seja, independente de representação da vítima, para os casos de lesão corporal leve (previstos no artigo 129, §9º do Código). Pelo instituído, qualquer pessoa pode denunciar a agressão, não precisando ser, necessariamente, a vítima. Isso pode ser feito a revelia dela, independente de sua vontade.
“Mas e a autonomia da vítima?”, questiona Renata Oliveira. “Observo nesta decisão, e nas discussões sobre ela, um dilema que já era enfrentado há décadas pelas feministas de então, que lutavam por políticas públicas específicas para o tratamento da violência de gênero: a vitimização como fórmula necessária para a sensibilização dos órgãos com poder decisório versus a autonomia da vontade da mulher”. (Importante atentar que a ação já é incondicionada quando se trata de lesão grave, como espancamentos e violações sexuais).
“Não creio que medidas como essa, que reforçam o controle penal, serão eficazes. Além disso, ao ver a mudança de uma ação penal pública de condicionada para incondicionada, penso na retirada de poderes da vítima, na invasão da esfera de sua privacidade e no monopólio da ação no Ministério Público. A antiga existência da necessidade de representação se justificava em nome e em respeito da vítima e de seus direitos”, questiona Camilla.
Ambas são enfáticas ao frisar que, com a ação incondicionada para lesão leve ,são retirados poderes da mulher com a justificativa da proteção e repete- se a vitimização feminina, reproduzindo a lógica social que na dicotomia público/privado equivale à primeira característica ou campo ao masculino e a segunda característica ou campo ao feminino. “A mulher é vítima de violência no âmbito doméstico pelo homem, protegido no âmbito público do direito pelo homem (considerando a própria estrutura do direito bem como a constituição, ainda majoritariamente masculina, dos seus órgãos e instituições)”, explica Camilla, que frisa: “simbolicamente, como já dito, pode ser positivo. Ainda assim, tenho dúvidas. Prefiro a adoção de instrumentos que reforcem o empoderamento feminino no lugar de reforçarem sua vitimização”.
A vida como ela é, mas não deveria ser
“Como eu não atuo diretamente na delegacia de proteção à mulher, os casos que atendo são geralmente no plantão, eventuais. Quase todos me marcam, de uma forma ou de outra. Um deles, muito triste, é de um casal, praticamente andarilhos, que já tinham dois filhos, e a mulher engravidou. Ele a agrediu com chutes e pontapés na barriga, ela estava com quatro ou cinco meses de gravidez, magrinha, dependente química, assim como ele. Ela perdeu o bebê. Sofreu um aborto, em decorrência das lesões. Fiquei muito chocada, e ele dizia que realmente chutou a barriga dela, que o filho não era dele, que queria mesmo matar o bebê.
Meses depois, eu estava respondendo pela delegacia de mulheres, nas férias da delegada titular, e me caiu nas mãos o Inquérito. Ele já havia sido solto, e os dois estavam novamente vivendo juntos, na rua. E ela estava grávida, de novo. Nos autos, vi que ela não tem família, perdeu a guarda dos outros filhos, e ele é a única pessoa que ela tem. Às vezes me pego pensando nela e no quão pouco o Estado fez por ela: tomou os filhos, não ofereceu um tratamento para sua dependência, nem outra opção que não fosse voltar para a rua e para a companhia do agressor. Penso se ela ainda está com ele, e se ainda está viva” – Relato da delegada, Renata Oliveira.
Segundo dados da Unicef, “no Mundo faltam cerca de 60 milhões de mulheres que foram abortadas por serem seres femininos, assassinadas quando bebês pelo mesmo motivo ou morreram vítimas de maus-tratos. Em 79 países a violência contra as mulheres não é punida. No contexto Europeu, apenas 5% dos casos chegam à polícia, mas estima-se que uma em cada cinco mulheres seja agredida pelo parceiro masculino. Aliás, 25% de todos os crimes violentos registrados na União Européia foram cometidos por um homem contra a sua mulher ou companheira. Os dados se tornam ainda mais catastróficos quando o Conselho da Europa, na Recomendação n° 1582/2002, indica que a violência contra as mulheres no espaço doméstico é a maior causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos, ultrapassando o cancro, acidentes de aviação e até a guerra” (CORREIA, Patrícia. Violência Doméstica – Uma realidade que não pode ser ignorada).
O trecho citado abre o texto da Ação Direta de Constitucionalidade 19, ajuizada pela Presidência da República, em novembro de 2007, com objetivo de propiciar uma interpretação judicial uniforme do disposto na Lei Maria da Penha (11.340/06) e mostra que grande parte do mal que assola as mulheres mundo afora é fruto do machismo. No último dia 9 de fevereiro, o Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou tal ação e três pontos são marcantes na decisão proferida.
O primeiro – de relevância inquestionável para o enfrentamento à violência de gênero – é a decisão acerca da constitucionalidade da Lei. “Essa é uma manifestação significativa e que merece celebração: com a declaração de constitucionalidade, o Tribunal põe fim à discussão, equivocadamente levantada por alguns poucos, de que a lei traria uma violação à igualdade, por conferir proteção diferenciada a mulher vítima de violência doméstica”, enfatiza a advogada e professora de Direito Penal e Processual, Camilla Magalhães. Vale ressaltar que garantir a igualdade não significa considerar todos iguais, subtraindo as diferenças. Assim, os juristas levaram em consideração que o contrário da igualdade não é a diferença, mas a discriminação. A Lei Maria da
Penha, ao reconhecer a diferença de poder e de tratamento recebidos pela mulher nas relações domésticas, restabeleceu a igualdade.
Brasil avança ao reconhecer constitucionalidade da Lei Maria da Penha: Em 79 países, a violência contra as mulheres não é punida. Foto:Stock
Para a delegada Renata Oliveira, que lida na ponta com os desdobramentos da Lei, o estabelecimento da constitucionalidade tem impacto direto na garantia de direitos e empoderamento da mulher. “Quando dizemos minoria, não dizemos em termos numéricos, mas em termos de representatividade e poder de decisão – ainda são as mulheres, assim como os negros e outras minorias, sub-representadas nas esferas de poder, sejam elas do poder público ou da iniciativa privada, que detém grande influência sobre os rumos das políticas públicas”.
Outra decisão do STF, que ao contrário do louvor à constitucionalidade, causou questionamentos, diz respeito à inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) aos casos de crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher. “Vejo sempre a opção penal, a opção pelo punitivismo, com cautela, por uma razão simples: a criminologia crítica nos mostrou, ao longo dos últimos anos, que o direito penal não cumpre sua promessa de evitar ou prevenir a violência (quando não é o próprio responsável por ela, inclusive pela violência de gênero). Assim, a inaplicabilidade da lei dos juizados - lei que busca uma justiça consensual e tem medidas despenalizadoras aos casos de violência doméstica, é uma clara opção pela pena como solução e, como dito, essa promessa não se cumpre (ou ao menos não se cumpriu até hoje)”, explica Camilla.
O ponto mais polêmico fica por conta do que o Supremo estabeleceu acerca da ação penal pública incondicionada, ou seja, independente de representação da vítima, para os casos de lesão corporal leve (previstos no artigo 129, §9º do Código). Pelo instituído, qualquer pessoa pode denunciar a agressão, não precisando ser, necessariamente, a vítima. Isso pode ser feito a revelia dela, independente de sua vontade.
“Mas e a autonomia da vítima?”, questiona Renata Oliveira. “Observo nesta decisão, e nas discussões sobre ela, um dilema que já era enfrentado há décadas pelas feministas de então, que lutavam por políticas públicas específicas para o tratamento da violência de gênero: a vitimização como fórmula necessária para a sensibilização dos órgãos com poder decisório versus a autonomia da vontade da mulher”. (Importante atentar que a ação já é incondicionada quando se trata de lesão grave, como espancamentos e violações sexuais).
“Não creio que medidas como essa, que reforçam o controle penal, serão eficazes. Além disso, ao ver a mudança de uma ação penal pública de condicionada para incondicionada, penso na retirada de poderes da vítima, na invasão da esfera de sua privacidade e no monopólio da ação no Ministério Público. A antiga existência da necessidade de representação se justificava em nome e em respeito da vítima e de seus direitos”, questiona Camilla.
Ambas são enfáticas ao frisar que, com a ação incondicionada para lesão leve ,são retirados poderes da mulher com a justificativa da proteção e repete- se a vitimização feminina, reproduzindo a lógica social que na dicotomia público/privado equivale à primeira característica ou campo ao masculino e a segunda característica ou campo ao feminino. “A mulher é vítima de violência no âmbito doméstico pelo homem, protegido no âmbito público do direito pelo homem (considerando a própria estrutura do direito bem como a constituição, ainda majoritariamente masculina, dos seus órgãos e instituições)”, explica Camilla, que frisa: “simbolicamente, como já dito, pode ser positivo. Ainda assim, tenho dúvidas. Prefiro a adoção de instrumentos que reforcem o empoderamento feminino no lugar de reforçarem sua vitimização”.
A vida como ela é, mas não deveria ser
“Como eu não atuo diretamente na delegacia de proteção à mulher, os casos que atendo são geralmente no plantão, eventuais. Quase todos me marcam, de uma forma ou de outra. Um deles, muito triste, é de um casal, praticamente andarilhos, que já tinham dois filhos, e a mulher engravidou. Ele a agrediu com chutes e pontapés na barriga, ela estava com quatro ou cinco meses de gravidez, magrinha, dependente química, assim como ele. Ela perdeu o bebê. Sofreu um aborto, em decorrência das lesões. Fiquei muito chocada, e ele dizia que realmente chutou a barriga dela, que o filho não era dele, que queria mesmo matar o bebê.
Meses depois, eu estava respondendo pela delegacia de mulheres, nas férias da delegada titular, e me caiu nas mãos o Inquérito. Ele já havia sido solto, e os dois estavam novamente vivendo juntos, na rua. E ela estava grávida, de novo. Nos autos, vi que ela não tem família, perdeu a guarda dos outros filhos, e ele é a única pessoa que ela tem. Às vezes me pego pensando nela e no quão pouco o Estado fez por ela: tomou os filhos, não ofereceu um tratamento para sua dependência, nem outra opção que não fosse voltar para a rua e para a companhia do agressor. Penso se ela ainda está com ele, e se ainda está viva” – Relato da delegada, Renata Oliveira.
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