domingo, 19 de agosto de 2012

MG: PMs denunciam maquiagem de BOs



Homicídios são registrados como encontros de cadáveres e roubos viram extorsões. Pressão seria feita aos praças pelo comando, que nega ordem



Policiais militares de Juiz de Fora relatam sofrer pressão por parte de superiores para mascarar a natureza das ocorrências, de forma a reduzir as estatísticas de crimes violentos. A maquiagem dos Registros de Eventos de Defesa Social (Reds, o antigo BO) vem sendo denunciada pela Tribuna há dois anos. Agora, pela primeira vez, militares se dispuseram a revelar o esquema: "Há uma pressão psicológica muito grande para que as naturezas sejam mudadas. O policial sabe que a ela não corresponde àquele crime, mas se vê obrigado a registrar da forma errada, sob pena de sofrer represálias", denuncia um PM lotado no 2º Batalhão, responsável pelo Centro e regiões Leste, Sudeste e Nordeste. Outro militar, este do 27º Batalhão, responsável pela zonas Sul, Norte e Cidade Alta, detalha o procedimento: "Você está de serviço, na viatura ou no posto policial, e se depara com uma vítima que relata ter sido roubada. Ela diz que o cidadão apontou a arma e exigiu o dinheiro. Roubo, certo? Não. Você passa a situação, via rádio, para a CPU (Coordenação de Policiamento da Unidade) ou para o oficial, e este determina que você registre como extorsão."

Esta situação do roubo à mão armada registrado como extorsão é mais comum porque este crime não integra o Índice de Criminalidade Violenta (ICV), elaborado pelo Estado e apresentado à sociedade como forma de medir a violência. Pelo mesmo motivo, também há casos de tentativa de homicídio sendo tratados como lesão corporal e homicídio consumado sob a alcunha de encontro de cadáver. As pressões pela maquiagem de BO teriam quatro origens: as companhias, os batalhões, o Centro de Operações da PM (Copom) e a CPU. "São várias as forças que tentam encobrir os registros", reforça o policial do 2º Batalhão.

Além de refletir na queda do ICV, o mascaramento dos BOs teria como objetivo o recebimento do prêmio por produtividade, oferecido pelo Governo do estado aos funcionários públicos que atingem as metas estabelecidas pela política de Acordo de Resultados. "Esse valor geralmente é pago em outubro e representa cerca de 80% do salário do militar. Para a PM, o que gera o prêmio é a redução do ICV e o aumento de apreensões de armas de fogo e de operações", diz um dos PMs.

Revoltados, os militares, que já lidam com a falta de estrutura e baixos salários pagos às patentes inferiores, enxergam, no mascaramento dos Reds, mais um desestímulo à atividade policial. "Muitos estão indignados pela forma como isso tem acontecido. Afinal, quem assina o BO, ou seja, o responsável pela ocorrência, é o PM que está na rua e não quem determinou que a maquiagem seja feita."

PM nega orientação
Em nota, a assessoria de comunicação da 4ª Região da PM (RPM) afirma desconhecer e abominar qualquer orientação para mascarar ocorrências, e garante: "o preenchimento do Reds é de total responsabilidade do militar empenhado e, cabe a ele, mediante sua análise do fato em concreto, estabelecer a natureza da ocorrência atendida, devendo se valer da Diretriz Auxiliar de Operações, documento doutrinário da corporação, que orienta a devida codificação de acordo com o enunciado do diploma legal correspondente".

Nova metodologia
Este ano, o Governo estadual mudou a metodologia do ICV. Atualmente, consideram-se crimes violentos os homicídios tentado e consumado, o roubo, o sequestro ou cárcere privado, os estupros tentado e consumado, além da extorsão mediante sequestro. Curioso é que, em Juiz de Fora, os dados oficiais, em geral, apontam queda da criminalidade. Entre 2010 e 2011, por exemplo, o ICV caiu 9,6% no município, ao passo que, em Minas Gerais, aumentou 10,8%, segundo a Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds). Na última quarta-feira, a 4ª RPM informou que o número de crimes violentos em Juiz de Fora caiu de 618 para 542, nos sete primeiros meses deste ano, comparados com o mesmo período de 2011.

Informações desencontradas nos boletins

Durante um mês, a Tribuna investigou centenas de boletins de ocorrência elaborados pela PM e descobriu que uma das mortes mais brutais e de maior repercussão em Juiz de Fora este ano não entrou oficialmente nos dados de criminalidade violenta. Isso porque o Reds nº 807686, que registrou o assassinato da ex-professora Ana Esther Scheffer, 78 anos, no Bairro São Pedro, foi classificado como encontro de cadáver. Chama atenção que a própria ocorrência apontou o nome de um dos suspeitos pela morte (ver fac-símile 1). A idosa foi encontrada com uma televisão sobre o rosto. Os dois suspeitos foram presos pela Polícia Civil menos de 24 horas após o crime. Além de matar a idosa, eles roubaram joias, dinheiro e um cartão do banco.



No levantamento, a reportagem também encontrou dezenas de casos de assalto a mão armada tipificados como extorsão. No dia 3 de abril, por exemplo, três entregadores de bebida tiveram cerca de R$ 600 levados por dois bandidos, enquanto os trabalhadores faziam uma entrega na Rua Hortogamini dos Reis, na Vila Olavo Costa. No Reds nº 689905 (ver fac-símile 2), o policial militar relata que um dos suspeitos de cometer o crime "anunciou o assalto" e ordenou que os três entregassem todo o dinheiro. Embora a própria ocorrência informe a ação do assalto, a natureza do registro foi tipificada como extorsão.



Já no dia 11 de julho, uma funcionária de uma banca de jornal na Rua Oscar Vidal, no Centro, foi rendida por um assaltante armado com revólver. Apontando a arma para ela, o homem a obrigou a entregar todo o dinheiro do caixa, cerca de R$ 2 mil, e fugiu. Desesperada, a jovem de 20 anos pegou o celular e ligou para a mãe, momento em que o assaltante voltou e apontou a arma em direção ao rosto da funcionária, obrigando-a, desta vez, a entregar o aparelho telefônico. Conforme o Reds nº 1420783 (ver fac-símile 3), o bandido "perguntou se ela queria morrer". O caso foi tido oficialmente como extorsão, embora aproxime-se mais de um assalto à mão armada.



Ainda em julho, desta vez no dia 14, um rapaz de 22 anos foi violentamente atacado, na Rua A do Bairro Jardim Casablanca, na Cidade Alta. Conforme o Reds nº 1446066 (ver fac-símile 4), a vítima foi encaminhada desacordada ao HPS, "sendo diagnosticados afundamento de crânio, edema cerebral, pneumoencéfalo, feridas corto-contusas no maxilar e cabeça, e escoriações secundárias em todo o corpo, sendo medicada e permanecendo internada na UTI em estado grave". O que seria uma tentativa de homicídio foi tipificada como lesão corporal. A gravidade das pancadas foi tanta que a vítima continuava internada no HPS até o início deste mês.



Exemplos de equívocos se multiplicam

Os possíveis equívocos na classificação de ocorrências são evidenciados quando os casos são encaminhados para a Polícia Civil, que costuma corrigir a natureza do crime. No último dia 31 de julho, o corpo de um homem de 26 anos foi encontrado queimado e enterrado em um terreno no Bairro Sagrado Coração de Jesus, Zona Sul. Apesar de a própria situação já sugerir um homicídio - uma pessoa, por si só, não conseguiria colocar fogo em si mesma e depois se enterrar -, o caso foi registrado como encontro de cadáver. A 1ª Delegacia Distrital tenta descobrir a autoria do assassinato.

Em outro caso, registrado no dia 1º de agosto, um homem de 37 anos agrediu violentamente a mulher, 21, no Parque Independência. A Delegacia de Orientação e Proteção à Família abriu inquérito para apurar a tentativa de homicídio, embora a ocorrência tenha sido registrada, pela PM, como lesão corporal. A mesma natureza foi escolhida para classificar outro crime registrado no mesmo dia: em processo de separação conjugal, uma mulher de 23 ateou fogo na própria casa, com o marido dentro, em Benfica, Zona Norte. Após o homem conseguir escapar, ela ainda conseguiu jogar álcool no corpo do marido e novamente atear fogo.

Especialista alerta para indício de erro

A pedido da Tribuna, o coordenador do Centro de Pesquisa em Segurança Pública (Cepesp) da PUC Minas e ex-secretário de Defesa Social Luis Flávio Sapori analisou algumas ocorrências e concluiu que "são casos flagrantes de maquiagem do Reds, especialmente aqueles envolvendo extorsão, nítidos casos de roubos à mão armada". No início do ano, em audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), o especialista já havia alertado os deputados estaduais da Comissão de Segurança Pública e Direitos Humanos sobre os "indícios seríssimos" de que as informações sobre a violência no estado estariam sendo manipuladas. Sapori ainda sugeriu auditoria externa nos dados, o que foi protocolado pelos parlamentares, mas ainda não ocorreu.
Na mesma audiência, o integrante da Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares de Minas (Aspra), Luiz Gonzaga Ribeiro, afirmou categoricamente haver orientação dos comandantes para que os policiais subnotificassem casos de violência. Os militares que se recusassem recebiam processo disciplinar e tinham a avaliação de desempenho prejudicada.

Procurada pela Tribuna, a Aspra diz que não tem mais recebido informação de subnotificação. "Denúncias podem ser enviadas pelo e-mail ouvidoria@aspra.org.br", recomenda o presidente da entidade, Raimundo Nonato Meneses Araújo.

'Não há punições'

Conforme o comunicado da 4ª RPM, "não há registros de nosso conhecimento, que comprovem alteração por meio de intervenções, sejam elas do Centro de Operações (Copom) ou do oficial da Coordenação de Policiamento da Unidade (CPU), e, em consequência, não foram levantadas punições, devendo se deixar claro que qualquer notícia nesse sentido, por imperioso compromisso com o princípio da transparência, deve ser levado ao conhecimento deste comando, que determinará incontinente a devida apuração para determinar responsabilidades e efetuar a devida correição".

Por fim, a 4ªRPM alegou que "ao citar que o Índice de Criminalidade Violenta (ICV) se vale para consolidação das estatísticas dos homicídios (consumados e tentados), roubos, sequestros (consumados e tentados), além dos latrocínios (homicídios seguidos de roubo), o registro inicial da ocorrência não influi nos números: o resultado final parte do Centro Integrado de Informações do Sistema de Defesa Social (Cinds), que une os diferentes bancos de dados e elimina duplicidades e inconsistências. Após análise dessas informações é que se tem a fonte oficial de estatísticas de Minas Gerais".

2 comentários:

  1. Isso não acontece somente entre policiais. Quando fui fazer BO de um acidente de carro os policiais daqui de São José dos Campos tentaram de todas as formas me convencer que era um exagero, e desnecessário fazer o BO. Um colega de trabalho, vitima de estelionatários não conseguiu fazer um BO pois a policia civil achava que não precisava, "que era uma bobagem"

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  2. Isso já virou rotina!!! Desisto desse pais...

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