sábado, 23 de janeiro de 2010

O ladrão que deu adeus ao crime


Um dos principais ladrões de carros dos anos 70 e 80 agora vive em paz com a sua consciência

Nilson Mariano - do Zero Hora

O caminho do mal tem volta? Bandidos costumam ser incorrigíveis, acabam na cadeia ou no cemitério, mas um deles provou que é possível se regenerar. Na série em que reencontra personagens dos seus 46 anos, ZH conta como vive Fanor da Rosa, um dos principais ladrões de carros dos anos 70 e 80 e agora em paz com a sua consciência.


Fanor Lemos da Rosa caminha penosamente, como se as pernas estivessem chumbadas, apalpa o piso irregular da rua com as muletas, que se movem rente aos pés, cada passo arrastado é uma vitória. Sob o sol de janeiro, o único refrigério vem da brisa do mar. O esforço o exaure, mas ele não pede para descansar na cadeira dobrável que a mulher transporta ao lado. É um teimoso, sempre foi.

Aos 79 anos, o trôpego Fanor convalesce de um acidente vascular cerebral (AVC), sofrido no inverno de 2008, que o paralisou na cama por quase um ano. Não mexia mãos nem pernas, nem sequer a ponta dos dedos, mas jamais esmoreceu. Afinal, já se recuperou de algo igualmente tenebroso: era ladrão de carros.

E dos mais procurados da história policial gaúcha. Do fim da década de 60 até o início dos anos 90, jornais divulgaram seus furtos. Era o mestre da gazua (o ferrinho curvo de violar fechaduras), tinha predileção por “fusquinhas”. Chegou a ser apanhado no Paraná, rumo ao Paraguai numa Elba. Manchetes destacavam que teria levado mais de mil automóveis.

Filho de agricultores de Taquari, criado sob a severidade dos padrões rurais, Fanor ingressou nos subterrâneos do crime em 1968. Como era um bandido diferente – assegura que não agia armado e não machucava suas vítimas –, ganhou o apelido de Bom Ladrão. Tinha até um código de atuação próprio:

- Não usar revólver.
- Não ter parceiros.
- Não consumir drogas.
- Só levar carros desocupados.

E assim Opalas, Fuscas, Corcéis e Brasílias, mais Variants, Chevettes, Mavericks e outros bólidos foram surrupiados, para desespero dos seus donos. Hoje um bisavô, o corpo ainda travado pelo AVC, mas o cérebro vivaz, Fanor explica por que virou ladrão:

– Foi de gaiato, de bobo, de metido. Não precisava.

Não foi cumprindo penas nas cadeias que Fanor se regenerou. Ele deve a conversão à atual mulher, Eva, 69 anos. Os dois se conheceram em 1962, ela caiu de amores pelo seu primeiro namorado. Como sofria com as estripulias do mulherengo Fanor, cedeu a um conselho da mãe:

– Não te mete com um homem desses, nunca se ajeitam...

Eva casou-se com outro, teve cinco filhos, queria a estabilidade de uma casa guarnecida por cerquinha branca, roupas no varal, um cachorro abanando o rabo, flores para regar. Mas as brasas da antiga paixão não se extinguiram. Quinze anos depois da separação, ao ler em Zero Hora sobre mais uma prisão de Fanor, largou o marido e correu para a Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), em Charqueadas. A emoção do reencontro balançou as grades.

– Eu tremia, ele tremia – lembra Eva.

Pela regeneração, vale até apelo ao céu

A mulher supôs que o cárcere, um tiro sofrido na coxa e as perseguições haviam amaciado Fanor. Então começou a puxá-lo para o lado do bem. Cumulou-o de afagos, mas também pediu ajuda ao sobrenatural. Umbandista, fez encomendas para a Mãe Oxum, sua protetora, e a Iemanjá.

– Precisava domar a fera – conta.

Nos anos 80, Fanor despediu-se da bandidagem. Pelos registros da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), terminou de pagar a dívida com a Justiça em 1996, ao deixar o regime semiaberto. Há cinco anos, decidiu morar num pequeno balneário gaúcho, em busca do sossego que só o anonimato pode oferecer.

O casal vive na companhia de três cachorras e de um papagaio falastrão, que chama Fanor de “Nego”, imitando o tratamento carinhoso dispensado por Eva. Na parede da sala, o retrato que selou a união: a filha arquiteta, atualmente na Alemanha.

Eva e Fanor relutaram dar entrevista, temem perder a paz finalmente alcançada. Um dos motivos para se manifestar é apresentar sua versão. Ele jura que não furtou mais de mil veículos, como alardearam os jornais, baseados em informações da polícia. Assume a parte que lhe cabe, mas não o que penduraram indevidamente na conta:

– Pois é, tinha que dar risada disso. Como é que ia dar tempo de levar tanto carro? Não tem cabimento.

Três vezes por semana, durante 40 minutos, Fanor caminha na frente de casa para se recompor do AVC. Vai e vem, como um caracol, escoltado por Eva, seu anjo da guarda. Na volta da terapia, molhado de suor, senta-se na varanda e faz uma recomendação a quem se candidata à delinquência:

– Que não entrem, não se metam. A cadeia é a maior escola, a maior tristeza.

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