Contra modelo de repressão às drogas defendido pela ONU, políticos e intelectuais brasileiros buscam modelos democráticos
Marina Lemle, da Comunidade Segura
No auditório lotado, figuras influentes do pensamento brasileiro se destacavam na primeira fileira: João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo; Merval Pereira, colunista do jornal O Globo; o economista Edmar Bacha; a escritora Rosiska Darcy de Oliveira; o ministro Carlos Velloso, do Superior Tribunal Federal; o coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Jorge da Silva; o advogado Jorge Hilário Gouvêa Vieira; e os deputados federais Paulo Teixeira e Raul Jungmann, entre outros formadores de opinião. No fundo, as câmeras de TV disputavam espaço.
Não era para menos. Na mesa, o ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso iria propor uma profunda mudança de paradigma na política atual de drogas, começando pela descriminalização do usuário, ponto que vem defendendo junto com os ex-presidentes do México e da Colômbia, Ernesto Zedillo e César Gaviria (os três são co-fundadores da Comissão Latino Americana sobre Drogas e Democracia).
A questão estava na pauta do dia porque dois dias antes, durante o lançamento do relatório de 2009 da Junta Internacional de Fiscalização a Entorpecentes (Jife), o representante do escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) para o Brasil e o Cone Sul, Bo Mathiasen, que apresentou o relatório, fez duras críticas à posição dos ex-presidentes.
No relatório, a Jife registra sua preocupação com um movimento crescente em países da América do Sul, tais como Argentina, Brasil e Colômbia, para descriminalizar a posse de drogas ilícitas, em especial a maconha, para uso pessoal. "Lamentavelmente personalidades influentes, incluindo ex-políticos de alto escalão de países da América do Sul, têm manifestado publicamente o seu apoio a esse movimento", afirma o relatório.
Para a Jife, se esse movimento não for combatido pelos respectivos governos de forma contundente, irá prejudicar os esforços nacionais e internacionais de combate ao abuso e ao tráfico de entorpecentes. "O movimento representa uma ameaça para a coerência e para a eficácia do sistema internacional de fiscalização de drogas e passa uma mensagem equivocada para o público em geral", diz o documento.
Política ineficaz guiada por interesses externos
Convidado especial da 3ª Reunião da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, realizada em 26 de fevereiro na sede do Viva Rio, no Rio de Janeiro, Fernando Henrique Cardoso não parecia nem um pouco abalado pelas críticas do representante da ONU. À vontade diante da platéia altamente qualificada, ele contou que aos poucos foi tomando consciência de que a repressão às drogas é ineficaz e não se afina com o sentimento brasileiro.
“É preciso rever a questão das drogas sob o ângulo da democracia”, frisou. Para ele, apesar de ainda ser forte a ideia de que seria responsabilidade dos órgãos de segurança enfrentar as drogas, eles não teriam condições para isso. FHC ressaltou que o tráfico de drogas tem uma dimensão global, e o Brasil não deve aceitar uma política guiada por interesses de outros países, em especial os Estados Unidos.
“O proibicionismo não vai resolver o problema. Precisamos buscar caminhos alternativos”, disse. O ex-presidente reconhece que não existem receitas simples, mas sugere dois caminhos principais: a redução dos danos, com o atendimento dos usuários pela rede de saúde pública, e a concentração da repressão sobre os grandes traficantes. “No Brasil, hoje, a diferença entre usuário e traficante é tênue e depende do julgamento da polícia e do juiz”, observou, acrescentando que a prisão acaba aumentando o grau de criminalidade do suposto traficante.
FHC ressaltou que há uma tendência bem definida na Europa e até nos Estados Unidos de revisão da guerra às drogas devido ao fracasso dos seus resultados. Ele discorreu sobre o exemplo de Portugal, que em 2001 adotou uma política de redução de danos. “Enquanto permanecer a noção de que o uso de drogas é crime, as pessoas fugirão do atendimento médico. É preciso tratar droga com naturalidade”, disse.
Em Portugal, a pessoa pega usando drogas na rua é encaminhada a um conselho especial formado por um médico, um psicólogo e um sociólogo, mas não há registro judicial, para evitar estigmas. A penalização não passa pelos canais judiciários, mas administrativos, como trabalho e multa.
Leves e pesadas, sem distinção
O ex-presidente do Brasil foi além da defesa da discriminalização da maconha, posição que tornou pública há mais tempo. Desta vez ele defendeu que, na formulação da nova política, se considere o conjunto das drogas, e não se procure fazer distinções entre drogas leves e pesadas.
“Essa distinção é um pouco artificial. Qualquer droga faz mal, causando danos à pessoa e à sociedade em graus variados. O uso abusivo da maconha pode causar mais danos pessoais do que o uso eventual da cocaína. Então dar mais espaço às drogas leves é falacioso”, colocou. Para ele, o importante é que o usuário de qualquer droga não seja criminalizado por isso, e sim tratado.
FHC ponderou, entretanto, que a questão da violência é diferente na Europa e no Brasil. “Aqui há uma disputa armada por territórios, ligação direta com tráfico de armas e outros crimes, enquanto na Suíça a preocupação é a saúde pública, o que torna a solução muito mais simples. Precisamos pensar mecanismos para fazer a paz”, concluiu.
Balestreri: repressão ao pequeno traficante é enxugar gelo
Outra fala contundente foi a do secretário Nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri. Ele criticou o que chamou de hipocrisia social, na qual drogas altamente destrutivas como o álcool são licitas. “Há 70 mil mortes no trânsito por ano, a maioria causada pelo consumo de bebida alcoólica”, exemplificou.
Para o secretário, a repressão deveria ser deslocada para as fronteiras secas e marítimas. “A mera repressão ao pequeno tráfico no meio urbano é enxugar gelo”, disse. Na sua opinião, é mais importante impedir a entrada de armas longas e regular o uso delas pela polícia do que prender pequenos traficantes.
Balestreri usou argumentos de um artigo do deputado Paulo Teixeira, também presente ao evento, para mostrar as contradições da política atual de repressão às drogas: muito tempo e dinheiro são gastos no combate ao pequeno traficante e ao tráfico, independente da natureza da droga. Além disso, a prisão tem um caráter “criminógeno”, sendo definida pelos próprios presos como uma "faculdade de crime". O secretário defendeu a despenalização do pequeno traficante, que hoje lota os presídios.
Ricardo Balestreri destacou também a importância de políticas de prevenção e educação, favorecidas pelo aumento da proximidade da polícia, bem como das políticas de tratamento do uso abusivo. Ele deu ênfase especial ao crack, que “merece um pensar qualificado”, e anunciou a criação pelo governo de um grupo de policiais especializado na repressão qualificada ao crack.
Primeiras convicções da CBDD
O presidente da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, Paulo Gadelha, que também é presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), listou algumas das convicções para melhorar a lei de drogas resultantes das últimas reuniões da comissão, que reuniram profissionais das áreas de saúde e segurança pública.
Entre elas estão a necessidade de dar tratamento diferenciado para usuários e traficantes, descriminalizando os usuários e movendo a questão do consumo do campo da segurança para os da saúde e da cultura; a repressão ao crime organizado; a promoção da redução do consumo; e a elaboração de meios científicos e morais de controle, como é feito com outras drogas lícitas.
Marina Lemle, da Comunidade Segura
No auditório lotado, figuras influentes do pensamento brasileiro se destacavam na primeira fileira: João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo; Merval Pereira, colunista do jornal O Globo; o economista Edmar Bacha; a escritora Rosiska Darcy de Oliveira; o ministro Carlos Velloso, do Superior Tribunal Federal; o coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Jorge da Silva; o advogado Jorge Hilário Gouvêa Vieira; e os deputados federais Paulo Teixeira e Raul Jungmann, entre outros formadores de opinião. No fundo, as câmeras de TV disputavam espaço.
Não era para menos. Na mesa, o ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso iria propor uma profunda mudança de paradigma na política atual de drogas, começando pela descriminalização do usuário, ponto que vem defendendo junto com os ex-presidentes do México e da Colômbia, Ernesto Zedillo e César Gaviria (os três são co-fundadores da Comissão Latino Americana sobre Drogas e Democracia).
A questão estava na pauta do dia porque dois dias antes, durante o lançamento do relatório de 2009 da Junta Internacional de Fiscalização a Entorpecentes (Jife), o representante do escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) para o Brasil e o Cone Sul, Bo Mathiasen, que apresentou o relatório, fez duras críticas à posição dos ex-presidentes.
No relatório, a Jife registra sua preocupação com um movimento crescente em países da América do Sul, tais como Argentina, Brasil e Colômbia, para descriminalizar a posse de drogas ilícitas, em especial a maconha, para uso pessoal. "Lamentavelmente personalidades influentes, incluindo ex-políticos de alto escalão de países da América do Sul, têm manifestado publicamente o seu apoio a esse movimento", afirma o relatório.
Para a Jife, se esse movimento não for combatido pelos respectivos governos de forma contundente, irá prejudicar os esforços nacionais e internacionais de combate ao abuso e ao tráfico de entorpecentes. "O movimento representa uma ameaça para a coerência e para a eficácia do sistema internacional de fiscalização de drogas e passa uma mensagem equivocada para o público em geral", diz o documento.
Política ineficaz guiada por interesses externos
Convidado especial da 3ª Reunião da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, realizada em 26 de fevereiro na sede do Viva Rio, no Rio de Janeiro, Fernando Henrique Cardoso não parecia nem um pouco abalado pelas críticas do representante da ONU. À vontade diante da platéia altamente qualificada, ele contou que aos poucos foi tomando consciência de que a repressão às drogas é ineficaz e não se afina com o sentimento brasileiro.
“É preciso rever a questão das drogas sob o ângulo da democracia”, frisou. Para ele, apesar de ainda ser forte a ideia de que seria responsabilidade dos órgãos de segurança enfrentar as drogas, eles não teriam condições para isso. FHC ressaltou que o tráfico de drogas tem uma dimensão global, e o Brasil não deve aceitar uma política guiada por interesses de outros países, em especial os Estados Unidos.
“O proibicionismo não vai resolver o problema. Precisamos buscar caminhos alternativos”, disse. O ex-presidente reconhece que não existem receitas simples, mas sugere dois caminhos principais: a redução dos danos, com o atendimento dos usuários pela rede de saúde pública, e a concentração da repressão sobre os grandes traficantes. “No Brasil, hoje, a diferença entre usuário e traficante é tênue e depende do julgamento da polícia e do juiz”, observou, acrescentando que a prisão acaba aumentando o grau de criminalidade do suposto traficante.
FHC ressaltou que há uma tendência bem definida na Europa e até nos Estados Unidos de revisão da guerra às drogas devido ao fracasso dos seus resultados. Ele discorreu sobre o exemplo de Portugal, que em 2001 adotou uma política de redução de danos. “Enquanto permanecer a noção de que o uso de drogas é crime, as pessoas fugirão do atendimento médico. É preciso tratar droga com naturalidade”, disse.
Em Portugal, a pessoa pega usando drogas na rua é encaminhada a um conselho especial formado por um médico, um psicólogo e um sociólogo, mas não há registro judicial, para evitar estigmas. A penalização não passa pelos canais judiciários, mas administrativos, como trabalho e multa.
Leves e pesadas, sem distinção
O ex-presidente do Brasil foi além da defesa da discriminalização da maconha, posição que tornou pública há mais tempo. Desta vez ele defendeu que, na formulação da nova política, se considere o conjunto das drogas, e não se procure fazer distinções entre drogas leves e pesadas.
“Essa distinção é um pouco artificial. Qualquer droga faz mal, causando danos à pessoa e à sociedade em graus variados. O uso abusivo da maconha pode causar mais danos pessoais do que o uso eventual da cocaína. Então dar mais espaço às drogas leves é falacioso”, colocou. Para ele, o importante é que o usuário de qualquer droga não seja criminalizado por isso, e sim tratado.
FHC ponderou, entretanto, que a questão da violência é diferente na Europa e no Brasil. “Aqui há uma disputa armada por territórios, ligação direta com tráfico de armas e outros crimes, enquanto na Suíça a preocupação é a saúde pública, o que torna a solução muito mais simples. Precisamos pensar mecanismos para fazer a paz”, concluiu.
Balestreri: repressão ao pequeno traficante é enxugar gelo
Outra fala contundente foi a do secretário Nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri. Ele criticou o que chamou de hipocrisia social, na qual drogas altamente destrutivas como o álcool são licitas. “Há 70 mil mortes no trânsito por ano, a maioria causada pelo consumo de bebida alcoólica”, exemplificou.
Para o secretário, a repressão deveria ser deslocada para as fronteiras secas e marítimas. “A mera repressão ao pequeno tráfico no meio urbano é enxugar gelo”, disse. Na sua opinião, é mais importante impedir a entrada de armas longas e regular o uso delas pela polícia do que prender pequenos traficantes.
Balestreri usou argumentos de um artigo do deputado Paulo Teixeira, também presente ao evento, para mostrar as contradições da política atual de repressão às drogas: muito tempo e dinheiro são gastos no combate ao pequeno traficante e ao tráfico, independente da natureza da droga. Além disso, a prisão tem um caráter “criminógeno”, sendo definida pelos próprios presos como uma "faculdade de crime". O secretário defendeu a despenalização do pequeno traficante, que hoje lota os presídios.
Ricardo Balestreri destacou também a importância de políticas de prevenção e educação, favorecidas pelo aumento da proximidade da polícia, bem como das políticas de tratamento do uso abusivo. Ele deu ênfase especial ao crack, que “merece um pensar qualificado”, e anunciou a criação pelo governo de um grupo de policiais especializado na repressão qualificada ao crack.
Primeiras convicções da CBDD
O presidente da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, Paulo Gadelha, que também é presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), listou algumas das convicções para melhorar a lei de drogas resultantes das últimas reuniões da comissão, que reuniram profissionais das áreas de saúde e segurança pública.
Entre elas estão a necessidade de dar tratamento diferenciado para usuários e traficantes, descriminalizando os usuários e movendo a questão do consumo do campo da segurança para os da saúde e da cultura; a repressão ao crime organizado; a promoção da redução do consumo; e a elaboração de meios científicos e morais de controle, como é feito com outras drogas lícitas.
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