quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Explicando a violência do Rio para quem não vive no Rio de Janeiro/Brasil


Nesta semana, o repórter da TV Brasil e Blogueiro, Vitor Abdala, foi procurado pela jornalista americana Taylor Barnes, correspondente de jornais como o Miami Herald e o Christian Science Monitor no Brasil. Ela chegou até ele através dde seus blogs (o Rio.40 e o Favelas Cariocas, este infelizmente carente de atualizações) e queria conversar sobre o crime no Rio de Janeiro e sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Eis o relato do repórter:


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Conversamos por cerca de uma hora e meia e tive a oportunidade de dar o meu ponto de vista sobre a violência no Rio de Janeiro e no país. Apesar de ter sido incapaz de responder a perguntas como “por que o jogo de azar é proibido no Brasil, mas o governo pode explorá-lo?” ou ainda “por que presos condenados, de alta periculosidade, têm direito a conversas privadas dentro de uma cadeia pública?”, a conversa foi bem interessante.

Falei sobre o tráfico, as milícias e a máfia dos jogos ilegais. Conversamos também sobre as “milagrosas” (e um tanto suspeitas) quedas nos índices de criminalidade no Rio de Janeiro. Contei a ela sobre a estranha e súbita reversão na tendência de registros de homicídios no segundo semestre de 2009, que registrou queda de 9% (depois de um primeiro semestre com aumento de cerca de 12% nos assassinatos).

Taylor se surpreendeu quando eu contei que os policiais começariam a receber dinheiro extra no salário se registrassem menos crimes a partir de julho de 2009. E justamente em julho, o Rio começou a ter quedas atrás de quedas expressivas nas taxas de homicídios, depois meses de altas consideráveis (inclusive uma alta de 9% no mês de junho).

A jornalista americana me perguntou porque “autos de resistência” não eram considerados homicídios no Rio de Janeiro. Eu contei que a tipificação “auto de resistência” deveria ser usadas apenas nos casos em que o policial mata o bandido para defender sua própria vida ou a vida de terceiros.

No entanto, no Rio de Janeiro, a maioria dos “autos” deveriam ser considerados homicídios mesmo, pois se tratam de erros ou execuções cometidos por policiais e forjados para parecerem confrontos.

Contei a ela sobre o número inacreditável de pessoas desaparecidas no estado do Rio. Em 2010, por exemplo, houve mais “desaparecimentos” do que homicídios registrados no estado do Rio. O ano fechou com mais de 5.400 registros de desaparecimento e 4.768 “registros” de homicídio. Como a maioria das pessoas desaparecidas provavelmente está morta (e muitas delas foram mesmo assassinadas), a taxa de homicídios certamente é muito maior do que querem fazer crer as autoridades.

Depois de falarmos sobre essas e outras coisas, disse a Taylor que, para entender porque o Rio e o Brasil são tão violentos e para compreender porque traficantes, milicianos e mafiosos controlam negócios e territórios no Rio e outras partes do país, ela precisava entender a sociedade brasileira.

Disse a ela que a sociedade brasileira é extremamente corrupta. Para ilustrar o que dizia, mencionei a Operação Guilhotina, desencadeada na semana passada pela Polícia Federal. Disse que não era a primeira vez que isso aqui e que, aliás, casos de corrupção envolvendo policiais eram rotineiros no Rio de Janeiro. Comparei a Operação Guilhotina com as Operações Gladiador e Tinguí, de 2006, quando quase 100 policiais militares e civis foram presos pela Polícia Federal, por envolvimento com bicheiros e traficantes de drogas.

Na época, o então chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, não foi preso porque, politicamente, isso era complicado. Mas tão logo ele deixou seu cargo, foi condenado e preso. Não é raro policiais posarem um dia como heróis na imprensa e, no dia seguinte, aparecerem algemados.

Disse ainda que o problema não era apenas a polícia. A corrupção na polícia é talvez uma das mais destrutivas porque seus integrantes corruptos andam armados e podem, com isso, intimidar e matar oponentes. E também porque, com sua corrupção, permitem que a violência continue imperando na cidade.

Mas a corrupção existe em todos os braços do estado: Justiça, Receita, parlamento, governos, hospitais, escolas, departamentos de trânsito. A sociedade aceita a corrupção e participa desse jogo numa boa. “Se todo mundo está ganhando um ‘por fora’ porque eu não posso ganhar também?” é o típico pensamento brasileiro.

A sociedade brasileira não se divide entre o honesto e o corrupto, mas sim entre o malandro (que se dá bem) e o otário (que não se dá bem).

Disse também que as leis não funcionam para todos. As leis brasileiras só servem para duas coisas: beneficiar quem tem dinheiro e poder político-social e prejudicar quem não tem nenhuma dessas duas coisas.

A jornalista americana riu quando eu contei que um juiz não pode ser preso em flagrante como um cidadão comum. Contei que um deputado federal, ainda que seja assassino, estuprador, seqüestrador, ladrão e corrupto, só pode ser processado pelo Supremo Tribunal Federal. E nunca são condenados.

Dei o exemplo de um nobre deputado de São Paulo, acusado de desviar milhões dos bolsos dos contribuintes, que nunca é julgado e seus processos sempre prescrevem antes do julgamento.

Contei a ela que no Brasil os juízes não podem sentenciar ninguém à pena capital, mas policiais podem e sentenciam (e executam a pena). Disse que há algumas pessoas que defendem a institucionalização da pena de morte no país.

Afirmei que a pena de morte não funcionaria no Brasil. Traficantes presos com uma trouxinha de maconha seriam executados na cadeira elétrica, enquanto políticos que desviam dinheiro da saúde pública sequer seriam julgados. Afinal, a lei não funciona para todos no Brasil.

Expliquei à jornalista americana que as instituições brasileiras não funcionam direito, simplesmente porque não interessa a ninguém que isso aconteça. Afinal, se o cidadão puder exercer seu direito de ser bem atendido pelo Estado, para que ele vai precisar pedir favor para os políticos e os corruptos?

Aproveitei para lembrar que o Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, é um país com grande desigualdade social. Jovens pobres não têm as mesmas oportunidades (saúde, educação, trabalho, transporte, cultura, diversão) que os jovens ricos.

Perguntei a ela: por que você acha que existem favelas no Rio de Janeiro? Obviamente ela não soube responder. Ela veio de um país onde a maioria esmagadora dos cidadãos exerce seu direito à moradia.

Disse a ela que a cidade do Rio tem algo em torno de 200 a 300 mil famílias (cerca de 1,5 milhão de pessoas) morando em favelas (em geral, em barracos encarapitados nos morros). Levando em conta que uma habitação popular no Rio de Janeiro custa em torno de R$ 40 mil, afirmei que R$ 10 bilhões seriam suficientes para acabar com as favelas no Rio de Janeiro.

O reassentamento dessas pessoas pode ser feito no próprio local (isso foi feito com algumas famílias no Favela-Bairro. Quem duvida, basta olhar umas casinhas bonitinhas que existem no Morro da Mangueira).

Puxa, mas isso é muito dinheiro, podem me perguntar. Bem as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em apenas quatro favelas do Rio de Janeiro (Rocinha, Alemão, Manguinhos e Cantagalo/Pavão) já consumiram R$ 5 bilhões e não resolveram o problema dessas comunidades. Essas favelas continuam sendo favelas. Mais de 80% dos moradores dessas comunidades continuam morando em barracos pequenos, insalubres, feios e superlotados.

Some a isso o valor exorbitante que será gasto na realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Rio.

Disse que os políticos não acabam com as favelas porque, politicamente, é interessante manter 1,5 milhão de pessoas vivendo em necessidade. Favelas são currais eleitorais, onde políticos inescrupulosos continuam prometendo a 1 milhão de eleitores, eleições após eleições, melhorias que nunca chegam. Além disso, é muito mais fácil comprar o voto de pessoas que necessitam das coisas mais básicas.

Conversamos também sobre as UPP. Taylor, como qualquer jornalista estrangeiro, demonstrou um interesse especial sobre as Unidades de Polícia Pacificadora.

Ela me perguntou se eu achava que as UPP tinham tornado o Rio mais seguro. Fui categórico em afirmar que “não”. Disse que as UPP tinham um alcance restrito às comunidades onde elas eram instaladas e a seu entorno imediato.

Disse que não via como uma UPP na zona sul poderia tornar a Baixada Fluminense, o subúrbio ou a zona oeste mais seguros. Pelo contrário, disse que elas poderiam ter o efeito oposto: empurrar os milhares de traficantes e consumidores de drogas para as áreas sem UPP.

Disse também que os bandidos continuavam atuando em favelas com UPP, vendendo suas drogas e praticando crimes. Afirmei que, em alguns lugares, há indícios de que eles continuem atuando armados, como na Cidade de Deus.

Expliquei a ela que a UPP também poderia ter um efeito mais nocivo. As UPP poderiam dar uma ideia à população de que está havendo grande progresso na segurança pública. E, enquanto todos pensarem que as UPP são a solução para nossos males, os governantes não precisam resolver problemas mais profundos na segurança, como a corrupção na polícia e na justiça, a impunidade, a precariedade da investigação policial, a brutalidade policial, o tráfico de armas etc.

Encerrei a conversa dizendo que milícias, traficantes e bicheiros são apenas a ponta do iceberg, o fruto de uma sociedade doente, corrupta e desigual como a brasileira.

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